Cidades

Conheça a história dos rapazes e moças com Síndrome de Down que trabalham no STJ

Um deles virou assessor. Os outros cinco, agentes de portaria. Desde que chegaram, com verdade e alegria, mudaram as relações interpessoais naquela Casa de corredores largos e leis implacáveis

postado em 04/09/2010 09:51
Era pra ser apenas inclusão. O nome é bonito. Está na moda. É politicamente correto, até. Foi mais que isso. Foi melhor que isso. Virou histórias de vida. De renascimentos, de encontros e de emoção. Difícil esconder a lágrima que é engolida para que o choro não molhe o terno preto do magistrado. São 11h, estamos no Superior Tribunal de Justiça (STJ), lugar onde homens andam de toga e mulheres, de vestidos e saias bem-cortados e salto alto. Os corredores são largos. Os gabinetes, climatizados. Ali, julga-se a legalidade das decisões tomadas em instâncias inferiores.

Aline, Renan, Paula, Wagner, Liane e Fernando são os seis mais novos funcionários da Casa. O que os diferencia das outras pessoas é exatamente a capacidade de transformação e de superação de limites e preconceitosNas várias portarias internas do prédio gigantesco nota-se, trabalhando, uma gente que comumente não estaria ali. Não, não são os seguranças. São os seis novos funcionários. Moças e rapazes educados, sorridentes e muito dispostos a ajudar. Eles vestem impecáveis ternos pretos. Elas, terninhos ; da mesma cor. Um deles não está na portaria. É assessor especial. Até ontem, trabalhava no gabinete da presidência. A partir da semana que vem, trabalhará no terceiro andar, na sala do mesmo ministro, o homem que humanizou aquele lugar de corredores largos e gabinetes abarrotados de leis.

Mas, afinal, quem são esses seis novos funcionários do STJ? É uma gente especial mesmo. Tão especial que, em menos de um ano, arrebatou a simpatia e o carinho de todos os outros funcionários da Casa. Até daquela gente de toga. Esses rapazes e essas moças são portadores da Síndrome de Down. Sim, e a única coisa que os torna diferentes daquela outra gente são os olhos puxadinhos. O resto é detalhe. Puro detalhe.

Eles levaram o sorriso, uma certa inocência e muita verdade ; nunca mentem, não dissimulam e só dizem o que pensam e sentem. Levaram leveza a um lugar que nem sempre é leve. E fizeram aquela outra gente pensar em si mesma. Sem imaginar, esses rapazes e moças de olhos puxadinhos quebraram a sisudez do STJ. E ratificaram que ainda é bom sorrir e ser feliz. E como fizeram isso? Sorrindo, apenas sorrindo. Lei nenhuma seria capaz de ensinar isso.

Na manhã de ontem, o Correio teve o privilégio de conhecer essas seis pessoas. E ver como trabalham. Como se situam e estão inseridas naquele lugar. Chega-se à primeira portaria. É a que dá acesso ao gabinete da presidência. Lá, somos atendidos por um rapaz de terno escuro, sapatos da mesma cor, camisa branca e gravata vermelha. Está impecável. Senta-se à mesa onde trabalha, ao lado do gabinete do homem mais importante daquela Casa e um dos mais poderosos do país.

O rapaz se apresenta: ;Meu nome é Renan de Castro Mota;. E faz questão de dizer que o Mota dele é apenas com um t. Conta mais. Revela sua grande paixão, o Corinthians. E nos mostra, no computador que usa, o brasão do timão. ;Quero ser jogador de futebol;, revela. Passava das 11h. O homem de quem ele é assessor, dali a algumas horas, deixará a presidência. Passará a ser um dos 33 ministros daquela Casa.

;Capinha;
Na tarde de ontem, às 16h, o cearense Cesar Asfor Rocha, 62 anos, deixou, depois de dois anos, a presidência do STJ. Quem assume no seu lugar é o ministro Ari Pargendler, gaúcho de 65. Ao lado de Cesar, Renan, 25, o inseparável assessor. Foi na gestão de Cesar que a inclusão se fez presente. Em 2008, 220 deficientes auditivos compuseram o quadro de funcionários da Casa. Trabalharam na seção de digitalização dos processos.

A iniciativa foi um sucesso. ;A produtividade foi 30% maior que a do ouvinte;, diz Cesar. Economia de tempo e dinheiro gasto nos correios (os processos demoravam, em média, sete meses para chegar a Brasília). Redução de papel, estantes e arquivos. Hoje, grande parte desses profissionais, que teve a chance do primeiro emprego, está em outros órgãos públicos. Gol de placa!

Há nove meses, chegou uma outra turma. Eram oito, mas dois desistiram. Ficaram seis ; três rapazes e três moças. Todos têm Down. E isso, rigorosamente, como as decisões que são tomadas naquela Casa de homens de toga, não os tornou diferentes em nada. Renan foi levado para o então gabinete do presidente do STJ. Passou a acompanhá-lo nas sessões de plenário. Ajuda com os processos.

Usa até capinha ; uma toga menor. E se sente, de verdade, um assessor. Ao andar pelos corredores assépticos do STJ, quando alguém lhe pergunta onde trabalha, o rapaz de 1,57m não hesita. Torna-se gigante ao responder: ;Trabalho no gabinete do presidente;. Renan tem razão. Cesar é só elogios para o assessor: ;Ele é muito esforçado;. E vibra com os novos rumos do rapaz de Brazlândia: ;Ele abriu a própria conta bancária;.

Ao ser perguntado por que resolveu investir tanto em gente na sua gestão, o ministro Cesar chora. Segura a lágrima, para que ela não caia sobre o paletó preto, e mareja a voz: ;A gente precisa acabar com tanto preconceito. Fiz tudo que podia fazer;. Sentado no sofá da ampla sala de recepção do chefe, Renanzinho, como é chamado na Casa, conta histórias de sua vida quando ;era bebezinho;. Fala da morte do avô, de quem gostava muito. Que estuda num escola na região do Incra 8.

Empolgado, mostra o cartão de visita. E pede ao fotógrafo que mande as fotos para o e-mail dele. Dá-lhe, Renanzinho! Emocionado, o ministro diz: ;Todos gostam dele aqui;. Renan sorri. É riso de verdade. E depois, numa pose de autoridade, com a mão no bolso da calça, andando de um lado para o outro, fala ao celular com um amigo de Brazlândia. Combina a balada. Sim, Renanzinho adora forró, sertanejo e axé.

A mãe, Jucela de Castro Mota, 49, apoio técnico da Secretaria de Educação, alegra-se: ;Desde a ida para o STJ, ele ficou mais responsável, com maior autonomia. Com o salário (todos ganham R$ 690), compra as coisinhas dele e adora chamar os amigos para passear;.

Nas portarias, o Correio encontrou os outro cinco novos funcionários. Fernando César Tocantins Filho, 25 anos, mora no Cruzeiro. Faz natação e jiu jitsu. Adora malhar. Há nove meses, vê quem entra e sai. ;É bom trabalhar com gente. Todo dia conheço uma pessoa nova;, diz. E conta que tinha uma namorada, ia se casar, mas a sogra ;foi contra o casamento;. Antes, ele era empacotador de um supermercado na Asa Norte. ;Aqui é o meu segundo emprego. Gosto mais daqui. Tenho mais amigos;, comemora. Vascaíno roxo, sonha ser advogado.

Com a saída de Cesar da presidência, a partir da semana que vem, Fernando será o novo ;capinha; do novo presidente do STJ. E Renan? Continuará com o ministro Cesar, no gabinete. O mais comovente é que foi Renan quem indicou o amigo para o novo cargo. Pergunto para Fernando se ele vai ser mesmo. Espantado, ele responde: ;Isso é com o Renan;. Eles são sensacionais.

Planos e sonhos
As comoventes histórias se sucedem. Contratados por meio do Centro de Treinamento de Educação Física Especial (Cetefe) ; exceto Renan, cujo contrato foi feito com a presidência do STJ ;, os cinco funcionários são de diferentes regiões do DF. Paula Vidal, 22 anos, mora no Sudoeste. Faz teatro e dança. Numa das portarias do STJ, aprendeu a conhecer, todo dia, gente nova. ;Eles são educados comigo;, ela diz. Sonho de verdade? ;Quero trabalhar com eventos.;

Wagner Rodrigo Santos, do Lago Norte, é o mais novo do grupo. Está ali há um mês. De gel no cabelo, o rapaz de 20 anos é só empolgação: ;Coloco as bolsas das mulheres na esteira e dou informações;. No futuro, Wagner decidiu: ;Vou abrir uma loja de pizza;.

Liane Martins Collares (com dois ;eles; , ela faz questão de esclarecer) é gaúcha de Bagé, tem 47 anos (carinha de menina), mora na Asa Sul, é atriz, escritora e nadadora. Já tem uma obra lançada: ;Liane, mulher como todas;. Foi sucesso de público. ;O livro foi patrocinado pela minha família. Lancei em Salvador, Bagé, Porto Alegre, Teresina e aqui;, conta. ;Do que falo? Da minha vida, minha história, do nascimento até os 40 anos.;

Pensa que Liane parou por aí? Nunca. ;Meu nome é trabalho;, diz, maravilhada. Uma segunda obra está a caminho: ;Teatro, minha vida como atriz;. Insisto em saber do que se trata. Às gargalhadas, ela diz: ;Não vou contar mais nada. Já falei demais. É surpresa;. Liane é deslumbrante. Feliz de quem pode cruzar com ela pelo caminho.

Aline de Jesus Luz, 33 anos, é do Riacho Fundo. Trabalhou numa creche, como monitora. Agora, é agente de portaria do STJ. ;Fiz entrevista pra vir pra cá. Aí, pedi demissão do meu emprego;, conta. ;É bom mudar de vez em quando;, avalia a moça, que também é atleta de natação e ganhou medalhas de ouro em competições nos Estados Unidos.

Supervisor do Cetefe, Gilberto Cardoso de Araújo, 30 anos, que acompanha o grupo diariamente no STJ, emociona-se: ;Somos nós que aprendemos com eles;. O ministro Cesar, que acordou hoje ex-presidente do STJ, reflete: ;Ninguém diz o que é pra eles. Não se apresentam como doutores, juízes, advogados. Dizem os próprios nomes. Com eles, até as relações mudaram por aqui;.

Isso, maior do que qualquer lei, chama-se humanização. É olho no olho. É verdade. E foi isso que esse homem de toga levou para aquela Casa gigantesca de corredores largos. Renan, Aline, Fernando, Liane, Wagner e Paula são, de fato, excepcionais ; no sentido mais humano que a palavra puder expressar.

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