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Conheça a história de Maria Esmelinda, a fazedora de santos

Há mais de duas décadas, a encantadora Maria Esmelinda faz imagens com a madeira do buriti e as vende na Feira da Torre. A mulher que saiu dos confins de Pernambuco para ser doméstica na capital da República hoje é artista. Mesmo que ela nem se dê conta disso

Há histórias que demoram uma vida inteirinha para que alguém as conte. Mas nunca é tarde. E ela estava lá, no mesmo lugar, sentadinha na mesma cadeira de madeira rachada, esculpindo com estilete o que sabe fazer de melhor. Conhecê-la é ter a certeza de que a humanidade ainda é boa. E da madeira leve e bruta do buriti surgem Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora de Fátima, Santa Luzia, São Francisco, São Judas Tadeu, Santo Antônio, São Cosme e Damião e São José. Depois que as imagens de madeira ficam prontas, ela se dá conta de que talhou a própria vida em obra de arte.

Maria Esmelinda da Silva é uma fazedora de santos. Vê-la moldando o buriti árido e dando ares de divindade ao pedaço de pau seco encontrado no brejo é tão milagroso quanto a santidade dos seus santos. Isso talvez explique o fato de ela, que tem apenas 1,45m, ser uma gigante ; da forma como segurou a vida, refez seu caminho, criou os cinco filhos, enviuvou duas vezes, amou só uma, ajudou os netos, vê os bisnetos chegarem e talha seus santinhos com a madeira seca e velha do buriti. Maria Esmelinda é uma dama. Há histórias que, se não contadas, seriam um pecado.

Terça-feira, 11h, manhã quente em Brazlândia. Passa dos 29 graus. O Lago Veredinha, que enfeita a cidade, ameniza a secura. Maria Esmelinda está lá, num quartinho dos fundos, de chão de cimento bruto e parede só no reboco, esculpindo um pedaço de madeira sem vida. Aquele lugar é o ateliê da fazedora de santos. Ela convida para entrar. E ri. Os olhos azuis reluzem.

Naquele ofício, a mulher feliz de 82 anos se encontra com a menina sonhadora de Sertânia, no sertão pernambucano. Foi ali, no meio do nada, que nasceu a filha de Manoel Alexandre, o lavrador, e Maria Ermelinda, a fazedora de chapéu de palha, panela de barro e vassoura de piaçaba ; apenas uma letra deixou mãe e filha com nomes diferentes.

Maria Esmelinda cresceu vendo Maria Ermelinda ;fabricar ; suas panelas de barros. E, desde menininha, criou suas próprias obras. ;Mãe fazia as panelas e eu, os cavalinhos e os jumentinhos de barro;, ela conta. ;Um dia, eu tinha uns 7 anos, mãe perguntou o que era aquilo montado no jumentinho. Eu disse: ;É Nossa Senhora do Desterro, mãe;. Ela não acreditou que eu tinha feito aquilo com o barro.; Nunca mais parou de criar seus santinhos. Maria Esmelinda nasceu artista.

Virou adolescente. Aprendeu, também sozinha, a costurar, bordar, cozinhar. ;E a engomar com carvão de brasa. Nunca mãe me ensinou nada;, diz. Aos 21 anos, a moça prendada se casou com o primo José Augusto, moço trabalhador. Ele labutava na roça. Ela, em casa, com as atividades do lar e nas costuras. ;O povo vinha de fora pra eu costurar terno e vestido de gente rica.;

Vieram os filhos. Os ciúmes de José Augusto eram assustadores. ;Toda gravidez minha ele dizia que o menino não era dele;, lembra. Um dia, José Augusto ameaçou bater na mulher que fazia santos de barro. ;Eu peguei um tamborete e disse que se ele triscasse um dedo em mim eu jogava aquilo em cima dele.; Maria Esmelinda cansou e saiu de casa. Disse que viria morar em Brasília. ;O povo dizia que eu ia enricar aqui. Eu só queria me libertar daquele ciúme.;

Doméstica
Os dois filhos mais velhos ficaram com José Augusto. Ela carregou o mais novo. ;Mãe já tava aqui. Eu vim atrás dela;, diz. Maria Esmelinda contava 36 anos. Parou em Taguatinga. Era 1964. O patrão de um irmão deu abrigo para a família por um tempo. Depois, mudaram-se para uma invasão no Setor de Indústria. Mais tarde, para a Vila do IAPI, perto do Núcleo Bandeirante.

Maria Esmelinda passou a costurar para sobreviver. E fazia, para aumentar a renda, cestinhas de palha de buriti. Uma amiga levava as peças para a Feira da Torre. Vendia tudo. A mulher de Sertânia casou-se pela segunda vez. E amou Djalma como nunca amara homem nenhum. Quando a filha havia dias de nascida, o marido foi assassinado. ;Ele gostava muito de beber e ir pras festas. Numa noite, ele foi prum forró desses, deve ter se metido numa briga e levou uma pedrada de uma mulher. Morreu na hora;, conta.

Aos 39 anos, Maria Esmelinda ficara viúva pela segunda vez. Nunca mais se permitiu amar. Arrumou emprego como doméstica. Pulou em vários endereços, até o último, na 107 Sul. ;Eu costurava, lavava e engomava;, diz. Um dia, na pressa para pegar o ônibus que a levaria de volta para casa, em Brazlândia, caiu na escada do prédio. A queda lhe fraturou o fêmur. Graças à patroa, conseguiu ser operada no Hospital Sarah do Aparelho Locomotor. Não pôde mais trabalhar como antes. Passou a usar bengalas.

E o que fazer? ;Toda vida não gostei de ficar em casa sem fazer nada;, diz. Maria Esmelinda teve que reiventar a vida. Há mais de duas décadas, como uma luz divina, chegou até suas mãos um retrato de Nossa Senhora Aparecida. Ela pegou um pedaço de madeira de buriti e, com um estilete, como ourives lapidando uma joia, tentou esculpir o que via no retrato.

Nasceu uma santa de pau. Uma conhecida viu. Gostou e disse que ela podia tirar a carteirinha de artesão. ;Levei a santinha no Centro de Desenvolvimento Social e eles gostaram. Disseram que era uma artesã. Me deram uma carteirinha.; Maria Esmelinda passou a fazer mais e mais santos. ;Ia pegar o buriti longe, lá no brejo, na Chapada Imperial. Ia andando, com meu neto, que era pequenininho. Pegava os pedaços maduros.;

Feitos de paz
Com a carterinha de artesã, Maria Esmelinda voou. Ela passava dos 50 anos. Lutou para conseguir uma banquinha na Torre de Tevê. E há mais de duas décadas, é ali que mostra o melhor do seu trabalho. Do buriti, nascem seu santos. E seus toténs. Da palha, as cestinhas. ;Trabalhava de dia e de noite. E vendia tudo. Fiz minha casinha com os santos do buriti. E comprei um carrinho usado (Santana Quantum, 1988), para meu neto me levar à torre. Ia de ônibus, carregando o buriti na cabeça...;

Hoje, pela dificuldade para andar ainda provocada pela queda e pelo agravamento da osteoporose, Maria Esmelinda não consegue ir mais toda semana para a torre. Mas não passa um dia sem fazer suas santas. ;Gasto dois dias numa só. Num dia, é só esculpindo com o estilete. Noutro, é só a parte da pintura;, conta.

Hoje, a artesã nem olha mais para os retratos dos santos. ;Nem olho mais a imagem. Aprendi fazendo;. Das mãos segura da mulher que esculpiu a própria vida, surge uma Nossa Senhora de Fátima tão delicada quanto a que está no Santuário de Fátima, em Portugal. Uma Nossa Senhora Aparecida olha com compaixão. O manto de São Francisco de Assis e sua cruz. Santo Antônio com semblante de paz.

Sentadinha no quartinho nos fundos da casa humilde, Maria Esmelinda esculpe. Faz obra de arte. E pede a Deus: ;Eu só penso assim: que Ele me dê força pra continuar;. E conta, em lágrimas, o que viu há três meses: ;Tava aqui, fazendo mais uma cestinha, quando fui à cozinha. Ao levantar e olhar pro céu, vi Nossa Senhora direitinho. Não consegui ver o rosto, mas o manto. Era ela. Eu vivo a vida de fazer Nossa Senhora. O povo diz que, de tanto fazer, eu devo ter visto. Não foi, não. Nesse dia, eu nem tava fazendo Nossa Senhora;.

Em mais de 20 anos, Maria Esmelinda perdeu as contas de quantos santos nasceram de suas mãos. ;Acho que já fiz mais de dois mil. Mas antes, o povo comprava mais. Hoje, vendo pouquinho. E, assim mesmo, quem ainda compra é estrangeiro. As pessoas acham caro pagar 35 reais por um. Elas não imaginam como é trabalhoso fazer. Hoje, o buriti é comprado.;-

Dom divino
Simplesinha como é, a mulher que inventou santos feitos com buriti ; é a única artesã do DF que trabalha com essa técnica ; não se considera artista. ;Eu, artista? Não, meu filho, sou apenas uma aprendedora. Todo dia aprendo mais um pouco. Acho que a vida é assim: a gente nasce pra aprender.; E mostra os dedos cheios de calos. ;Nem tenho mais digital;, brinca.

Com as mãos arrebentadas pelo trabalho na madeira, admite o orgulho por ter conseguido fazer e viver do que gosta: ;Deus me deu o dom de poder aprender todo dia. Se não fossem os santinhos, já teria morrido. O meu prazer é trabalhar;. Maria Esmelinda se queixa de não ter aprendido as letras. ;Não tenho estudo nenhum. Só faço meu nome. Nunca deu tempo de ir pra escola. O que fiz a vida todinha foi trabalhar, de sol a sol.;

Bobagem, Maria Esmelinda. Quem pegou a vida com força de leoa e esculpiu-a como obra de arte aprendeu tudo. Até a fazer santos delicados que nascem de uma madeira bruta. Isso é talento. Sabedoria. Delicadeza que nenhum banco escolar seria capaz de lhe dar. Maria Esmelinda nasceu para ser artista. E conhecê-la foi ter a certeza de que o ser humano ainda pode ser bom.

Contato

Para encamendas de santos ligar para a filha de Esmelinda, Aparecida, no telefone (61) 9150-7378