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Às vésperas de completar 77 anos, Rilda recomeçou sua carreira profissional

Depois da morte do marido, ela, que foi vedete no Rio de Janeiro e chegou a Brasília em 1957, voltou ao lugar onde mais se sente bem. Participou de nove peças e hoje à noite estreia seu primeiro longa, no Cine Brasília

postado em 07/09/2010 06:15

Novamente em ação: o palco é o lugar onde ela mais gosta de estarNa certidão, recém-tirada, está escrito: data de nascimento ; 9 de novembro de 1935. Ela corrige: ;Não, meu pai só me registrou dois anos depois que tinha nascido. Nasci em 9 de novembro de 1933. Vou fazer 77 anos e não 75;. Raro, raríssimo, uma mulher querer aumentar a idade, sobretudo depois que passa dos 40. Elas fazem tudo para, inclusive, nem tocar no assunto. É tabu. Mas ela quer. Enche a boca, orgulhosa, das mais de sete décadas que viveu.

Rilda Techmeier, filha de índia e português, é assim. Diz o que pensa e o que quer. Viúva de um alemão refugiado, a pernambucana Rilda escreveu sua história como se fosse uma peça de teatro. Na verdade, a vida dela sempre foi uma peça de teatro. Pelo menos assim ela a concebeu. Muitos anos depois da viuvez, Rilda se reencontrou com sua arte. Hoje, às 20h, no Cine Brasília, na 106/7 Sul, ela estará em cartaz na pré-estreia do filme Além dos olhos, do diretor brasiliense Peterson Paim, de 32 anos.

Rilda faz uma participação na trama que aborda a história de um homem que teve os pais assassinados na infância e, de repente, passa a ver que as pessoas da cidade desaparecem misteriosamente. Começam os conflitos religiosos naquele lugar. E a dúvida de uma população entre manter a própria crença ou mudar de religião para salvar a vida.

Momento atual, no jardim de casa, no Guará I: alegria de viver, sempreO longa, uma produção independente com 20 atores, teve cenas rodadas em Brasília, Pirenópolis, Goiás Velho e Goianésia. Foi feito entre 2003 e 2004, editado em 2007, sonorizado em 2008 e só agora chegará às telas, depois de sete anos de luta e entraves. ;Estou esperando a resposta das distribuidoras para que ele entre em circuito;, diz o diretor.

A mulher de 77 anos é uma das personagens que se revoltam com a seita que chega à cidade e faz justiça com as próprias mãos. Rilda, ao contrário da personagem, não se revoltou com seita nenhuma. Mas, numa revolução bem interna, mudou a vida para continuar viva. ;Hoje, seu eu sou feliz é porque eu gosto muito de mim;, ela diz.

Com o grupo Viver a Vida, do qual faz parte há 10 anos: teatro sem idadeSegunda, 10h30, QI 18 do Guará I. Numa casa em reforma, uma mulher com uma flor de lótus (representação da elevação e expansão espiritual budista) tatuada no peito esquerdo, conta as horas para ver o primeiro filme na telona. A casa, com poeira em todos os cantos, não a incomoda tanto. ;É ruim, mas já tá acabando;. E mostra a suíte, com banheira de hidromassagem, presente dos filhos. ;Adoro ficar relaxada;, diz.

A vida de Rilda nem sempre foi assim, de banhos de espumas e sais. Pelo contrário. A mãe morreu quando ela ainda era criança. O pai se casou com outra mulher. Ela conta que, pelo desentendimento com a madrasta, saiu do Recife ainda menina. Foi morar no Rio de Janeiro, na casa de parentes, em Higienópolis, subúrbio de classe média baixa da Zona Norte carioca. ;Eu era muito bonitinha, tinha pernas grossas, cintura fina. Uma vizinha disse pra eu entrar num curso de modelo. Fui. Queria ser manequim.;

Momento modelo: pose para um estúdio da cidadeDo curso de modelo, Rilda se encantou pelo teatro e pela dança. ;Eu não era boa bisca, meu filho. Sempre fui e vou continuar rebelde;, diz, às gargalhadas. E, ainda segundo as memórias da atriz, veio a paixão pelo teatro. ;Fui vedete, não era do time principal, era ponta, mas dançava. Conheci a Virgínia Lane nos mesmos espetáculos.; Começavam os anos 1950. Ainda no Rio de Janeiro, ela chegou ao Teatro Duse, de Paschoal Carlos Magno. ;Nessa época, eu morava em Santa Teresa, num quartinho alugado.; Rilda sempre esteve à frente do seu tempo.

Casamento
Na época do teatro, do charme dos bondinhos de Santa Teresa e de um Rio de Janeiro que não mais existe, ela conheceu um rapaz de olhos azuis e cabelos da cor de sol. Era Donar Techmeier, filho de alemães, oficial da Marinha Mercante do Brasil. ;Ele gostou de mim, mas eu era noiva de outro rapaz;, diz.

Depois da morte do marido, ela, que foi vedete no Rio de Janeiro e chegou a Brasília em 1957, voltou ao lugar onde mais se sente bem. Participou de nove peças e hoje à noite estreia seu primeiro longa, no Cine BrasíliaDonar foi mais esperto. Rilda terminou o noivado. E começou o namoro com o rapaz de olhos azuis e pele rosada. ;A mãe dele não me aceitou porque ela dizia que eu era negra e jamais se casaria com o único filho dela;, conta. A paixão venceu até o preconceito. ;Ele tiveram que me engolir. Um dia, ele, que já tinha feito um curso de arquitetura, me perguntou se eu tinha coragem de fugir com ele para Brasília. Eu vim...;

Em 1957, a capital era apenas uma miragem. E lá vieram Rilda e Donar, num caminhão que levou 16 dias para chegar à terra de JK. O desembarque foi na Cidade Livre. Hospedaram-se no Hotel Rio de Janeiro. ;As lágrimas molharam todo o meu rosto. Eu disse: ;Meu Jesus, o que vim fazer aqui?; Só tinha mato e barro e tristeza. Como se deixa o Rio de Janeiro pra viver assim?; ; Casaram-se no cartório de Luziânia. Mudaram-se, tempos depois, para a Vila Planalto. Era o começo da identidade candanga.

Brasília é inaugurada. ;Ele trabalhava com projetos de arquitetura;, ela lembra. Nasceram os quatro filhos, dois meninos, duas meninas ; hoje com 50, 48, 46 e 42 anos. ;E criei mais dois afilhados, a Fátima e o Washington;, ela diz. O tempo passou. Os anos insistiram em correr. Os filhos cresceram. Da Vila Planalto, Rilda e Donar foram para Taguatinga, depois para uma casa na 713 Sul. Rilda se esqueceu do teatro. Virou mãe e dona de casa.

Reviravolta
Estreando a banheira, presente dos filhos: Rilda se cuida bemRilda conta que o marido arrumou amantes. ;Foram várias. E bebia muito. Morreu novo, há mais de 20 anos, em consequência de complicações no fígado;, diz. ;Nessa época, os dois sogros, que nunca me aceitaram, vieram morar aqui e morreram nos meus braços. Ele numa semana; ela, oito dias depois.;

Viúva, com os filhos criados e encaminhados, ela decidiu que voltaria ao teatro. Há 10 anos, parou no grupo Viva a Vida, do diretor Tulio Guimarães, no Teatro Dulcina. Participou de nove peças. ;O teatro me salvou, me revigorou, me deu coragem para continuar em frente. Me trouxe a alegria de viver de volta.; E continua, emocionada: ;Faço teatro e cinema para esquecer da vida;.

Rilda atuou também em peças dos diretores Plínio Mósca (Édipo Rei ) e Hugo Rodas (Cora Coralina). Além do teatro, voltou às aulas de canto. Participou de três corais ; UnB, do Guará e da Rainha da Paz. Fez fotos em estúdios, como modelo. Desfilou em concursos de beleza da terceira idade. Ganhou três vezes o título máximo.

Parou aí? Jamais. Rilda é incansável. Retomou seus trabalhos em pintura e cerâmica ; faz peças muito especiais. E voltou a namorar. ;De vez em quando aparece alguém interessante. Sim, claro, ainda não tô morta nem fria;, brinca.

No palco, durante encenação do clássico Édipo-Rei, de SófoclesA atriz assume a vaidade. ;Gosto de estar bem. Faço musculação, natação. pilates e dança de salão. E gosto também de me embelezar. Só nunca fiz plástica. Você tem que envelhecer com dignidade.; Às gargalhadas, revela: ;Meu filhos dizem que sou exibida;. E reflete: ;É que gosto mesmo de me sentir viva. Eu me gosto, me amo. Não me embelezo para os outros, mas para mim mesma;.

A bibliotecária Marusca Techmeier, 49 anos, uma das filhas de Rilda, elogia a mãe: ;Com essa idade, ela ainda tem tanto gás! Amanhã (hoje) estarei lá, prestigiando o trabalho dela;. A outra filha, Maya Techmeier, militar de 42 anos, analisa: ;Essa é a forma de ela se manter sempre ativa: esquecer as tristezas;.

Rilda conta os minutos para chegar hoje à noite. Como o livro que está escrevendo sobre sua trajetória, ;que vai misturar realidade e ficção;, a atriz fez da sua vida seu próprio filme. Talvez o melhor ; triste, alegre, bom, ruim, ora conto de fadas, ora pesadelo, ora Brasília, ora Rio de Janeiro, ora Recife... Este é o seu filme. E nele ela é sempre a atriz principal.

Às vésperas de completar 77 anos, Rilda faz planos. ;Quero achar ainda muita graça na vida. E atuar em muitas peças. Ser convidada para outros filmes. Quero viver, viver muito...;


CONFIRA
Além dos olhos ; Pré-estreia hoje, às 20h, no Cine Brasília (106/7 Sul). Entrada franca. Sessão única.

Veja trailer do filme no site www.paimfilmes.com

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