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Mitri Moufarrege montou a primeira fábrica de refrigerantes em Brasília

Quando desembarcou no Brasil, vindo do Líbano, ele já alimentava pelo país um amor transmitido por meio das histórias contadas por seu pai. Foi um dos primeiros a acreditar no sonho de JK e a construir uma bela história na capital

postado em 11/09/2010 09:01
Moufarrege construiu um grande patrimônio e foi fundamental para o crescimento de uma cidade na qual poucos apostavamFalar de Brasília é como lembrar-se de si mesmo para o empresário libanês Mitri Moufarrege, um dos pioneiros que ajudaram a trazer o desenvolvimento econômico para a nova capital. Mesmo com a distância geográfica que separa a terra natal de Moufarrege de Brasília, os dois ; o homem e a cidade ; não poderiam deixar de se encontrar. Era 1957 quando ele pisou aqui pela primeira vez. Veio a convite de Juscelino Kubitschek para inaugurar um comércio.

A cidade precisava de movimento. Com visão empreendedora, o libanês escolheu montar uma fábrica de refrigerantes. Dela saía o Pioneiro, o guaraná preferido em todos os acampamentos e obras durante a criação da capital. A confiança depositada por ele nesse investimento atraiu muitos outros comerciantes para a capital ainda deserta.

Cada história contada por Moufarrege faz com que os olhos dele se afoguem em uma inegável nostalgia. Saudades do tempo em que Brasília era um sonho que começava a nascer diante dos olhos de dois tipos de gente: aqueles que acreditavam nela e os que não botavam fé. Moufarrege se encaixava na primeira categoria. É um homem de aperto de mão forte, semblante tão afável quanto seguro e que não gosta de falar sobre a própria idade ou o patrimônio.

JK (D), à época: Ele veio para Brasília como quem faz uma aposta em um jogo alto e arriscado. Mas é preciso voltar bem antes de 1957 para entender suas razões. Quando era criança, no Líbano, Moufarrege escutava as histórias que o pai contava sobre o Brasil. O patriarca havia sido mascate durante dois anos em território verde-amarelo. O menino imaginava as paisagens, o povo, as tradições tão diferentes daquelas que ele conhecia.

Quando completou 18 anos, em 1954, o rapaz decidiu conhecer o Brasil. Tinha apenas um acordeão e US$ 200 no bolso. ;O Líbano é uma terra montanhosa que desde sempre sofreu com as disputas de território, verdadeiras guerras. Eu não teria muitas possibilidades de futuro ali;, avaliou. ;Decidi vir para o país pelo qual meu pai plantou amor no meu coração.; Sem muito dinheiro no bolso, Moufarrege comprou a passagem de navio parcelada a perder de vista.

Recepção
A viagem pelo mar durou quase um mês. Já na embarcação, o rapaz começou praticar seu maior talento: o de ganhar dinheiro. ;Eu só tinha um acordeão. No navio tinha um monte de franceses. Então comecei a tocar música francesa. Eles adoraram e começaram a me pagar. Quando desci do navio, já tinha dinheiro para mandar ao meu país para quitar minha passagem.;

Ele desembarcou em solo carioca sem falar português e muito bem-vestido em um terno de corte fino. Logo viu o Cristo Redentor. ;Fui recebido pelo Cristo de braços abertos;, recorda, com a voz embargada na garganta. Moufarrege soube que no Rio havia comunidades inteiras de árabes. ;Fui até lá e comecei a bater de loja em loja. Acabei conseguindo um emprego de vendedor.; Pouco mais de um mês depois, já arriscava falar algumas palavras em português. ;Desenvolvi um sistema de vendas diferente, que evitava o desperdício. Eu trocava os cortes de pano que encalhavam na loja por outros diferentes direto na fábrica. Era o poder de negociar. Em três anos eu já tinha minha própria loja;, orgulha-se.

O encontro
Moufarrege foi convidado a comandar a inauguração da nova sede da associação comercial da categoria na qual atuava. Ele cortaria a faixa junto do presidente JK. ;Perguntei a ele como estava Brasília. Ele respondeu: ;Turquinho, você é contra ou a favor de Brasília?;. E eu disse: ;Presidente, esta é a obra do século!’. Ele respondeu com um convite para conhecer a cidade e três dias depois lá estava eu. Fomos de avião, lado a lado;, relatou.

Quando desembarcou no Brasil, vindo do Líbano, ele já alimentava pelo país um amor transmitido por meio das histórias contadas por seu pai. Foi um dos primeiros a acreditar no sonho de JK e a construir uma bela história na capitalEm 1957, ele começou a escrever sua história na cidade. Andou de jipe um dia inteiro pelo lugar onde seria construída Brasília, acompanhado por autoridades. Atento a detalhes, passeava pelos canteiros de obra na hora do almoço e via os candangos dividindo uma garrafa pequena de guaraná. ;Perguntei ao cantineiro porque cada um não tinha a sua e ele explicou que era caro. Além disso, não tinha água potável e álcool era proibido. Nesse momento eu tive a ideia de produzir um guaraná mais barato, que todos pudessem beber.;

O libanês pediu isenção de impostos ao então ministro da Fazenda para construir um negócio na Cidade Livre. ;Me xingaram por não querer pagar imposto. Mas depois aceitaram.; Moufarrege foi a São Paulo, buscou um projeto para a fábrica de refrigerantes, matéria-prima, funcionários com experiência no ramo, máquinas e um caminhão. Na volta, construiu um barracão de madeira onde seria a fábrica.

Em 1958, depois de 120 dias de obra, o negócio abriu as portas na Segunda Avenida, n; 1.915, onde hoje é o Núcleo Bandeirante. JK estava presente. Quando o presidente segurou nas mãos o guaraná Pioneiro, viu a inscrição na rolha: ;Brasília-DF;. Até então, escrevia-se ;Brasília-GO; nas mercadorias. ;Ele me perguntou se aquilo estava certo e eu disse: ;Se o pai da família não acredita na sua obra;.;. E nós dois choramos de emoção;. A bebida passou a ser vendida nas cantinas por um preço acessível. Rapidamente se tornou líder. Onde havia um candango almoçando, lá estava o refrigerante Pioneiro. Eram vendidas mais de 30 mil caixas por mês.

Moufarrege começou com 40 funcionários e chegou a 400. Em 1964, deixou de produzir o Pioneiro e passou a ser dono de uma franquia de uma grande marca de bebidas. Em 2002, começou a atuar no ramo de hotelaria e nunca perdeu o poder de se reinventar. Mesmo diante de todo o sucesso financeiro, Moufarrege afirma que o maior presente dado por Brasília a ele foi conhecer a aqui a mulher, Martha, com quem tem dois filhos, Dimitri e Amir. ;Com ela eu quadrupliquei minhas alegrias. Meus dois filhos vieram condecorar o pai pela caminhada do sucesso.;

Apaixonado por Brasília, o pioneiro faz um apelo à geração brasiliense: ;Vocês são responsáveis por defender o plano original de Brasília. Essa não é uma cidade como as outras, não deve ser vertical;. E tenta reavivar a memória do criador da nova capital. ;O Brasil teve um dos melhores presentes: JK. Ele teve a felicidade de ter Israel Pinheiro, que executou a obra, homem de fibra, determinado. O Brasil, antes de JK assumir, era um pessimismo total. JK transformou o Brasil em um país otimista. Aguardamos um outro JK;, filosofa, saudoso.

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