postado em 17/09/2010 08:48
Quarta-feira, 16h. A primeira parada de ônibus do Eixinho Norte está lotada. A maranhense Antonia Rodrigues de Araújo, 28 anos, conhecida entre os amigos como Toinha, empregada doméstica há mais de uma década, espera ansiosa pelo coletivo que vai levá-la ao Pedregal, bairro do Novo Gama (GO). Na cidade distante 60km do DF, a moça vive com o marido, Wesley, 28, e o filho, Ícaro, 5. O motivo da pressa não é chegar logo em casa para descansar, mas começar logo a própria viagem de ônibus. Expectativa, no mínimo, inusitada. ;É que vai ter festa no busão;, Antonia diz, animada. Ela está grávida de seis meses. Aguarda a chegada de uma menina, Isabella. A festa será um chá de bebê.Quando entrar no ônibus, Antonia vai encontrar as amigas. São mais de 10, todas com a mesma profissão e sangue nordestino nas veias. As passageiras pegam o ônibus todo dia. No caminho, elas fazem a maior algazarra. Com direito a salgadinho, cerveja e risadas escandalosas. Na última quarta-feira, elas organizaram a doação de fraldas para Antonia, ou melhor, para Isabella.
Chegou o grande momento. O ônibus começa a recolher os passageiros por volta das 16h30. O caminho é longo: Eixo Norte-Sul, Park Way, Catetinho, Santos Dumont, Céu Azul e, finalmente, o Pedregal. Antonia é uma das primeiras a entrar. Senta-se lá no fim do corredor. ;Lugar de bagunceiro é no fundão, né?; Aos poucos, o coletivo está lotado. É difícil achar espaço para tanta alegria. No balanço do ;busão;, elas se servem de refrigerante e cerveja. É preciso ser equilibrista para não derramar.
As amigas enfeitaram os corredores do veículo com balões e cada uma levou um pacote do acessório para ajudar a companheira que vai dar à luz. Antonia comprou bebida e encomendou em uma confeitaria do Plano Piloto quibes, coxinhas, enroladinhos de salsicha e empadas de frango com milho. Tudo da melhor qualidade. Fez até pão de queijo. Em troca, ganhou dezenas de pacotes volumosos. Economizou um bom dinheiro.
Furdunço
Bem no horário da fome da tarde, o cheiro de salgadinho fresco toma conta do ônibus. Pobre de quem fica acanhado de se aproximar. ;Que vergonha ficar fazendo esse furdunço dentro do ônibus!”, criticou um passageiro. ;Pelo amor de Deus, ninguém merece!”, comentou outro. As moças parecem nem se importar. ;Vai devagar, motorista, que hoje eu quero curtir;, grita bem alto a piauiense Ana Claúdia Damascena, 32 anos, uma das amigas de Antonia, a mais animada. O motorista não reclama, mas também não obedece.
Imagine voltar para casa ao som de 10 mulheres falando sem parar. Se você não é uma delas, vai precisar de, no mínimo, bom humor para se manter em paz. Muita gente não resiste, vai se aproximando. Quem não participa da farra, porém, já fez até abaixo-assinado para protestar contra a barulheira. ;Tem quem goste e quem odeie a gente. Mas quem se importa? É só felicidade!”, explicou Antonia.
Tudo começou com duas ou três mulheres batendo papo. As outras chegaram e ficaram. ;Eu mesma não gostava das meninas antes de me juntar a elas. Um dia, quando eu nem estava grávida ainda, um homem me cedeu o lugar lá no fundo. Eu só ia nos bancos da frente. Depois desse dia, me juntei a elas e nunca mais quis ficar longe;, explicou Antonia.
Ônibus-bar
O grupo de amigas já até se batizou: ;Somos a Turma do 16h30;, elas dizem. Há quem saia do trabalho mais cedo e espere o ônibus desse horário passar para não perder a farra. Sempre tem bagunça, mesmo sem ocasião especial. Em um dia, uma leva o café. No outro, é dia de refrigerante. Sempre acompanhado de algum petisco.
Sexta-feira é momento de happy hour. ;A gente traz aquela cervejinha no isopor e já chega em casa numa boa;, relatou Deuza da Silva, 39 anos. ;Quando entro em casa, eu tô tão animada que boto um forró no rádio, dou banho nos meus três meninos, faço a janta e ainda tenho ânimo para dar carinho para o meu velho;, afirmou Raimunda Araújo Costa, 35, aos risos.
Sem preguiça
De manhã, também tem evento. Apesar de acordar antes das 5h, para pegar o coletivo às 6h, elas não se deixam abater. ;A gente faz um café da manhã maravilhoso. Vai e volta na maior empolgação;, disse Raimunda. O mascote da turma é o pequeno Thiago Pereira, 6 anos, filho de Neide Leite, 36. O menino adora a bagunça. ;Só tá faltando a música;, disse ele. Apelo ao qual Ana Cláudia responde estridente com uma paródia. ;Hoje é festa lá no meu aperto;, canta, ainda mais alto do que fala, transbordando de alegria.
Essa não é a primeira vez que as meninas comemoram momentos especiais dentro do ônibus. Ivone Paiva, 35 anos, celebrou seu aniversário mais recente no coletivo ao lado das colegas, com muita cerveja. ;Chamam a gente de louca com muita frequência;, admitiu Ivone. Além de festejar, elas também aproveitam a descontração para vender produtos de beleza encomendados por meio de revistas e roupa íntima.
Terapia
São quase 60km de agito. As amigas se conhecem há mais de um ano. ;Quando falta uma, todo mundo reclama;, afirmou Antonia. ;A gente se gosta de verdade mesmo. Liga uma para a outra no fim de semana. No caminho, vamos conversando sobre a vida toda. Marido, filho, trabalho, a novela, as tragédias. Uma sempre consola a outra. É uma terapia. Chego em casa muito bem;, relatou a gestante. ;A gente extravasa, o estresse fica todo dentro do ônibus;, resumiu Raimunda.
As moças se deram o título de ;as domésticas mais animadas de Brasília;. Antonia explica: ;A gente passa o dia todo trabalhando, cuidando da casa dos outros. É um jeito simples de melhorar o dia;. Há muito de inusitado dentro do ônibus. Antonia é chamada de Tânia pelas colegas. ;É que meu marido não gosta do meu nome verdadeiro, acha muito esquisito, aí ele só me chama de Tânia. Elas também aderiram.; Vai entender;Tânia ou Antonia, a moça é muito querida. Isso é o que importa.
Apesar de pagar uma das passagens mais caras do Brasil ; quase R$ 4, para andar em ônibus sucateados e cheios ;, a turma ainda encontra alguma graça no caos do cotidiano. Elas seguem em frente e fazem da felicidade o compromisso mais importante do dia.
"A gente se gosta de verdade mesmo. Liga uma para a outra no fim de semana. No caminho, vamos conversando sobre a vida toda. Marido, filho, trabalho, a novela, as tragédias. Uma sempre consola a outra. É uma terapia. Chego em casa muito bem"
Antonia Rodrigues de Araújo, empregada doméstica
Antonia Rodrigues de Araújo, empregada doméstica
O número
60 km
Distância média de Brasília ao Pedregal