Cidades

Brasileiro selecionado para Ballet Bolshoi esbarra em dificuldades financeiras

postado em 19/09/2010 09:55

A avó materna, uma vez, trancou as portas e as janelas da casa humilde pra ele não sair. Era dia de apresentação. Por ela, até hoje, as mesmas portas e as mesmas janelas permaneceriam fechadas. Ela não o queria voando. O pai, separado da mãe, um dia ralhou: ;Isso não é coisa de homem. Filho meu não faz isso. Você não vai me envergonhar;. A mãe, de 43 anos, lavadeira e faxineira das casas alheias, foi a única que nunca lhe fechou as portas.

Ainda assim, o menino lutou. Ele nem sabia exatamente o tamanho dessa luta. Deparou-se com a intolerância dentro da própria casa. Esse talvez seja o mais cruel dos preconceitos. Mas insistiu. Chorou sozinho. Abriu as janelas trancadas e pulou. O menino magricelo contava 10 anos.

Hoje, aos 13, é o primeiro brasileiro convidado, por meio de um programa de verão nos Estados Unidos, a fazer parte da exigente Escola de Ballet Bolshoi, na Rússia. Viverá no meio dos melhores. Dançará com os melhores. E muito provavelmente poderá ser um deles. Ele sabe disso. ;Meu sonho é ser o primeiro bailarino de uma grande companhia internacional.; Ninguém duvide disso.

Não parou por aí. Esse menino franzino de 1,58m e apenas 41kg também é o único brasileiro convidado para a festa de gala de abertura do Bolshoi, no fim deste ano. Lá estarão os nomes mais importantes da dança daquele país. E ele pretende estar lá. Conto de fadas? Parece, mas não é. Essa história precisa ser mais bem-contada.

Cabo Frio, Região dos Lagos, Rio de Janeiro, 2007. David Motta Soares bate à porta do Ballet da Comunidade e pede para a dona daquele espaço deixá-lo entrar. Ali, meninos e meninas carentes da cidade dançam de graça. O instituto foi criado ; e é dirigido ; pela professora Ofélia Corvello, ex-bailarina do Teatro Municipal, que levou aquilo como missão. O Lions Clube cedeu o espaço e ela bancou o resto. Com doações de amigos e campanhas, a ex-bailarina consegue manter vivo o sonho de 350 crianças.

Pois bem, naquela manhã, o menino chegou ali. Ofélia o olhou e perguntou se ele queria mesmo dançar. Ele disse que sim. Ela acreditou nele. Com mais de 50 anos de profissão, Ofélia, hoje com 72 anos, reconhece de cara quem realmente sabe. De sapatilha, na ponta dos pés, logo nas primeiras aulas, ele a surpreendeu. Ofélia resolveu apostar no aluno. Falou com a mãe dele, a única que o apoiou. ;Não basta só ter talento. Tem que querer. E ele queria. Ele quer;, comove-se a professora.

Vieram os treinos no Ballet da Comunidade. Horas e horas. Calos, pés em carne viva. Cansaço demasiado. ;Ele brigava comigo no começo, achava que eu exigia muito, mas sempre aceitava;, lembra Ofélia. Passaram-se três meses. A filha da professora, Regina Corvello, 46 anos, casada, dois filhos, mora em Brasília. Bailarina como a mãe, ela soube em cima da hora de uma competição que seria realizada em Taguatinga. Fez a inscrição do menino. E bancou a vinda dele para Brasília.

Era a primeira vez que saía de Cabo Frio. A primeira viagem. ;Preparei uma coreografia de 45 segundos, às pressas. Ele fez muito bonito;, lembra. David levou o terceiro lugar. A primeira medalha. E a certeza de que muito ainda estava por vir.

Prêmios
No ano seguinte, em 2008, Regina, que dá aula de balé numa escola particular de Brasília, trouxe David para morar aqui, com sua família, no Sudoeste. Nos anos 1970, Ofélia viveu também na terra de JK e montou por aqui várias academias. Mas voltou para o Rio de Janeiro. Regina ficou, desenvolvendo projetos ligados à dança.

David foi estudar na mesma escola onde Regina ensina. E nunca mais parou de dançar. Vieram os concursos nacionais, em várias partes do país. Os jurados ficavam boaquiabertos. Os primeiros lugares se somaram. E chegaram os concursos internacionais. Durante dois anos consecutivos ; 2009 e 2010 ;, ele foi selecionado entre os 30 melhores bailarinos do Brasil que representaram a delegação do país no Youth America Grand Prix, em Nova York, nos Estados Unidos, competição internacional de balé para jovens de até 19 anos de idade.

Chegar lá, entretanto, era o maior desafio de David. Mais até do que dançar nas exigentes seletivas, em São Paulo. As passagens sempre foram conseguidas com muita luta. Em 2008, o Correio contou o drama dele (ver fac-símile). A solidariedade do brasiliense o levou lá de novo.

Neste ano, em março, havia mais uma etapa do Gran Prix. Mais uma seletiva vencida. Regina preparou duas coreografias para David levar à América. Viagem marcada, no dia do embarque um contratempo abortou os sonhos do menino. O visto dele não lhe permitia viajar. No Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro, o menino chorou como gente grande. ;Foi a experiência mais traumática da minha vida;, lembra Regina.

A professora embarcou com a outra menina bailarina. David ficou. Para concorrer ao Grand Prix, antes os competidores mandam vídeos, para que sejam analisados. Regina enviou o de David, com as duas coreografias ; Pássaro azul, uma variação de repertórios, e uma idealizada por ela mesma, chamada Oklahoma, versão country. Depois, a organização do festival coloca todo o material no YouTtube, para que os concorrentes tenham acesso.

Um dos diretores da escola russa assistiu ao vídeo de David. Fez contato com Regina. E convidou o bailarino para participar do Programa de Verão do Bolshoi, nos Estados Unidos. Em julho deste ano, com a pendência do visto resolvida, ele embarcou para Middlebury, perto de Nova York. Isolou-se. Aulas e testes rigorosos. Avaliação diária durante um mês. Não podia ter contato nem com Regina. Só com os russos.

David estava no meio dos 200 melhores bailarinos do mundo. E era o único brasileiro naquele lugar. Desses, apenas dois seriam escolhidos para seguir os estudos na Rússia. E lá estava o filho da lavadeira, que mora numa casa que não tem televisão. Com ele, foi escolhida outra bailarina, uma menina dos Estados Unidos.

Deus
Tarde insuportavelmente quente e seca de quinta-feira. David, Regina e Ofélia nos esperam no foyer da Sala Vlla-Lobos do Teatro Nacional. Com a sapatilha que o faz voar, ele conta os dias para chegar novembro, data da viagem à Rússia. Mas como esta história não é conto de fadas, falta o dinheiro da passagem e do alojamento. ;A Escola Bolshoi dá o ensino integral. Quando o aluno não é russo, eles não cobrem todas as despesas;, explica Regina.

David sonha: ;Eles são os melhores do mundo, em disciplina, técnica e beleza;. E acredita: ;Eu creio em Deus, vou chegar lá;. Ofélia lembra, com a voz embargada: ;Um dos primeiros prêmios dele foram 300 reais. Ele deu tudo à mãe, pra comprar comida;. E assiste ao pupilo dançando: ;Ele só precisa voar. As autoridades podiam ver isso, ajudar, se sensibilizar;. Regina mareja os olhos: ;Prometi a ele que ia colocá-lo numa grande companhia;.

O menino cujo pai se recusa a vê-lo dançando fala de preconceito: ;Antes, sentir isso me travava. Hoje não ligo mais. Sempre vai existir. Toda pessoa, quando se decide por uma profissão, procura fazer o que gosta. E fazer o melhor;. Aos 13 anos, ele planeja, olhando para o tanto que ainda tem pela frente: ;Quero uma vida nova, me tornar um grande bailarino e levar minha mãe junto;.

Naquele foyer, na música improvisada num aparelho de som colocado no chão, David desliza, levita. Apresenta a coreografia Oklahoma. É como se subisse às nuvens. Só falta o voo principal: chegar à Rússia. Talento ele tem de sobra. Já provou isso com os pés em carne viva.

Como Billy Elliot
Preconceito parece que sempre rondou ; e sempre rondará ; os meninos que decidem usar sapatilhas. Aqui ou na China. No Maranhão ou em São Paulo. A história de David é tão real que o diretor Stephen Daldry fez seu brilhante Billy Elliot. O filme conta o drama de um garoto de 11 anos, que mora numa cidadezinha ao norte da Inglaterra e resolve deixar as aulas de boxe para dançar.

O pai trabalha numa mina de carvão, gosta de lutas e é radicalmente contra a ideia de o filho fazer balé. O garoto conta apenas com a ajuda e cumplicidade da professora, que durante muito tempo o mantém escondido na sala, longe dos olhos do pai. No fim do filme, o menino vence a discriminação ; da família, dos amigos e da cidadezinha. O pai se rende ao talento do filho. Leva-o a um grande teatro em Londres, para que ele comece a dançar. Billy vira adulto, torna-se o primeiro bailarino da companhia. Em lágrimas, o pai o aplaude de pé. O filme, de 2000, concorreu a três prêmios Oscar.


Colabore
Boa causa / Se você puder ajudar David a chegar em novembro à Escola Bolshoi, na Rússia, pode ligar para Regina ; 9694-5653. Para contribuições: Banco do Brasil ; Agência: 1507-5 Conta: 600560-8.

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