Cidades

Portadora de deficiência visual leva esperança a outros com mesmo problema

Jovem vai à luta, consegue concluir o curso de serviço social e é aprovada em um concurso da Secretaria de Justiça. Hoje, dedica-se a levar esperança a muitas pessoas que, como ela, enfrentam problemas por não terem todos os sentidos em pleno funcionamento

postado em 24/09/2010 08:21
Nayara defende a reserva de vagas no vestibular para portadores de necessidades especiaisA visão começou a abandonar os olhos de Nayara Magalhães dos Santos muito cedo. Era difícil decifrar o que diziam os livros escolares. A menina ampliava os textos e as figuras, tentava ir além da própria capacidade ; o que se tornou um hábito ;, mas a cabeça só doía. E nada de o mundo parecer mais fácil de desvendar. Apesar de ter nascido com uma doença grave, a retinose pigmentar progressiva (veja Para saber mais), a menina de cabelos e olhos claros foi criada para ser otimista. Nunca acreditou que perderia totalmente a visão.

Não aprendeu o braille, sistema de leitura por meio de pontos, quando era criança. A família, superprotetora, preferia acreditar que não seria necessário. Mas foi. Aos 18 anos, Nayara teve uma perda brusca na habilidade de enxergar. ;Os médicos acreditam que a minha visão piorou depois que minha mãe adoeceu e ficou muito tempo no hospital. Pode ter sido o nervoso, o baque emocional;, explicou a jovem. ;Não me preparei para isso porque meus pais acharam que o melhor para mim seria esconder esse problema. Eles não queriam aceitar a verdade, que teriam uma filha com uma deficiência em um mundo não adaptado;, completou.

Hoje, Nayara tem entre 15% e 20% da capacidade de ver, durante o dia. Ao anoitecer, cai para 10%. Mas a falta do sentido não a impede de ir longe. À época da piora, Nayara se preparava para o vestibular. Sonhava em cursar serviço social na Universidade de Brasília (UnB). ;Estudei a vida toda em escola pública e todo mundo sabe que assim fica mais difícil. Eu não tinha acesso a nada que facilitasse a minha situação como deficiente visual;, afirmou.

Mesmo diante do problema, Nayara matriculou-se em um cursinho preparatório para o vestibular. Gravava todas as aulas, enquanto uma amiga ajudava e lia os textos para ela. E assim Nayara estudou mais de 10 horas por dia, durante um ano. Passou na segunda tentativa. ;Escolhi o serviço social porque é o curso que mais trata de políticas sociais. O profissional dessa área defende um grupo vulnerável, as minorias. O primeiro auxílio que as pessoas procuram é o de um médico. A maioria deles trata a deficiência visual apenas com uma doença e não leva em consideração o social. A assistente atua justamente nesse setor;, justificou.

Mudança
Nayara conheceu um mundo diferente. Estava habituada a uma vida de isolamento: ;Sofri muito bullying na escola. Tinha que me sentar sempre muito perto do quadro, às vezes tropeçava nas coisas, batia a cabeça. Aprendi a me afastar dos outros para me defender;. Na universidade, a jovem encontrou amigos, alunos como ela ou professores. Conheceu o Programa de Apoio aos Portadores de Necessidades Especiais (PPNE). Nele, a estudante tinha direito a três tutores. Eles eram alunos bolsistas que a ajudavam durante a aula e nas provas.

;Quando percebi que muitas pessoas acreditavam em mim, me vi capaz de qualquer coisa;, lembrou. Quase quatro anos depois de ingressar na UnB, Nayara deu início ao trabalho de conclusão de curso, a monografia. O tema não poderia ser outro: o acesso dos portadores de necessidades especiais ao nível superior. ;Escolhi pesquisar porque há tão poucos deficientes nas universidades. É um problema que vem do ensino básico, passa pelo médio e leva a uma barreira no momento de ingressar na faculdade.; Nayara encontrou pouca bibliografia. Contou com a ajuda de computadores com leitores de tela.

Dificuldades
O trabalho trata das falhas na acessibilidade dentro da UnB. ;Faltam calçadas adaptadas, tudo é muito longe. Sempre esquecem um orelhão no meio do caminho, um buraco no meio da rua. A cidade toda é assim e a universidade não é diferente;, apontou. Mas o foco da pesquisa de Nayara é mais polêmico que a questão da mobilidade. A monografia leva o título Sistema de cotas para deficientes, uma alternativa viável.

;Percebi que a quantidade de deficientes só diminuía na UnB. De acordo com pesquisas, 26 mil deficientes concluíram o segundo grau no último ano. A demanda pelo ensino superior existe. Só há 48 deficientes na UnB inteira. Desses, somente 15 têm algum problema como surdez ou na visão. Os outros sofrem de dislexia, etc.;, constatou. Nayara entrevistou os professores do PPNE e os alunos especiais. ;Na minha hipótese, achei que não iam concordar com o sistema de cotas. Mas me surpreendi. Apenas um deles se colocou contra.;

Na conclusão, pela própria experiência de vida e pelo que viu na UnB, Nayara optou por defender a reserva de vagas no vestibular para portadores de necessidades especiais. ;Seria uma política de equiparação de oportunidades. Algo paliativo e não permanente. Quando a universidade conseguisse atrair esse público, não seria mais necessário;, argumentou.

;Essa medida teria de ser articulada com uma política de mudança no sistema educacional inteiro, desde o ensino básico. Deveria também ser acompanhada de uma política de permanência dentro do ensino superior, como o oferecimento de bolsas de pesquisa especiais;, acrescentou. Ganhou nota máxima, o SS. Agora busca meios de divulgar suas ideias e contribuir efetivamente com a sociedade.

Nayara não deixa de surpreender. Este mês, assumiu o cargo de assistente social na Secretaria de Justiça. Foi a única que passou no concurso para essa atividade específica. Agora, acompanha jovens que cumprem medida de liberdade assistida. Vai, inclusive, visitar a casa deles e orientar as famílias para que os adolescentes não voltem a cometer crimes. ;Para poder levar uma vida normal, é preciso aceitar-se. Depois, tentar ser independente, o máximo possível. E, principalmente, agarrar todas as oportunidades;, ensinou. Quem olha para Nayara não reconhece a limitação de imediato. Vê apenas uma jovem de traços suaves, maquiada com delicadeza, usando luzes no cabelo e unhas pintadas de rosa-claro. Na tarde de ontem, ela se exibia, esbelta, em um vestido verde, da cor da esperança.

"Para poder levar uma vida normal, é preciso aceitar-se. Depois, tentar ser independente, o máximo possível. E, principalmente, agarrar todas as oportunidades"


O número
26 mil
Número de deficientes que concluíram o segundo grau no ano passado em Brasília


Para saber mais
A doença

A retinose pigmentar éprogressiva uma alteração hereditária rara. Nela, a retina degenera-se de forma lenta e progressiva, conduzindo, geralmente, à cegueira. A incidência é de um caso para cada 4 mil pessoas. Nela, as células sensíveis à luz (bastonetes) da retina, que são responsáveis pela visão quando há pouca claridade, degeneram gradualmente. Os primeiros sintomas costumam começar na infância. Aos poucos, verifica-se a perda profunda da visão periférica, aquela que permite enxergar mesmo o que não é o foco principal do olhar. Nas etapas finais da doença, o portador ainda conta com uma pequena área de visão central e um resto diminuto de visão periférica. Ainda não existe cura para a doença.

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