postado em 02/10/2010 08:19

O bravo candango de 76 anos participou da construção da cidade desde antes do concurso do Plano Piloto. Esteve colado com Oscar Niemeyer, seu mestre; foi amigo de Samuel Rawet, engenheiro-calculista de algumas das mais importantes obras da cidade; e conviveu com outro engenheiro que calculou as estruturas dos palácios de Niemeyer, Joaquim Cardozo. De seu escritório de arquitetura, no Rio de Janeiro, o ex-presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) ativou a memória e relembrou ;um momento vigoroso do país, de conquistas fundamentais para a formação do Brasil;.
O testemunho de Campello é triplamente importante: pelo pioneirismo, pela proximidade com Niemeyer e pela singularidade de seu olhar, ao mesmo tempo humano, político e social. O arquiteto era ainda um estagiário quando se apressou a ajudar as duas filhas de Lucio Costa. Elas chegavam à então sede do Ministério da Educação no último minuto do prazo para inscrição dos projetos candidatos ao concurso do Plano Piloto. ;Quando começamos a desembrulhar e montar as pranchas do projeto, vimos que eram de uma singeleza que me espantou. E ao mesmo tempo tinha um encanto muito especial. Digo com orgulho que naquele tempo eu fui capaz de perceber esse encanto. Meu primeiro contato com Brasília aconteceu antes de ela existir.;
Pouco tempo depois, Glauco Campello veio morar em Brasília, recém-casado. Alojou-se numa das unidades da Fundação da Casa Popular, na W3 Sul, e de lá saía de caminhão ou de caminhonete para o barracão instalado onde hoje está o Ministério da Justiça. ;Era um ritmo alucinante, baseado sobretudo num emprego de mão de obra maciça. Tirava-se partido de uma mão de obra que estava ali numa oferta provavelmente a preços muito cômodos;, comenta o arquiteto de formação marxista. Se era cordial o clima entre operários, arquitetos,

Aprendizado
Campello não romantiza a convivência entre operários e profissionais qualificados. ;Não quero dizer que os arquitetos e os engenheiros se sentavam com os operários, a não ser em relações de trabalho. Mas isso era possível acontecer nas diversões da Cidade Livre. Havia um homem muito vivo, cheio de esperteza, que tinha o apelido de Quebra-Galho, que também era chamado de Pará, estado de onde veio. Pará fazia com que rompêssemos as barreiras sociais, uma coisa tão bonita que acontecia sem que a gente percebesse.;
O jovem estudante de arquitetura que deixou Recife para tentar um estágio no escritório de Oscar Niemeyer conseguiu o que queria e muito mais do que imaginava: participar da mais monumental aventura da arquitetura e do urbanismo brasileiros. Além de detalhar os projetos do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, Campello assinou suas próprias obras. São dele o projeto da Catedral Episcopal Anglicana (na 309/310 Sul), as capelas do Campo da Esperança, a primeira sede da Rede Sarah e o projeto de equipamentos do Parque da Cidade.
Durante a construção da capital, Campello conviveu com grandes mestres de sua área de conhecimento e de áreas circunvizinhas. Teve o privilégio de estar próximo de Joaquim Cardozo e Samuel Rawet, por exemplo. ;O Cardozo, eu conhecia de Pernambuco. Me lembro de que ia visitá-lo no escritório. Ele me cumprimentava, nos sentávamos e a partir de um mote qualquer ele falava uma meia hora de forma contínua, ampla e extremamente culta. Eu ficava fascinado com aquilo, e então chegava a hora e ia embora. Era disso que constava minha visita;, relembra.
Com Samuel Rawet, o outro engenheiro-literato de Brasília, as relações foram mais pessoais, e desse modo o arquiteto pôde conviver com a ;alma torturada, complexa; do contista. Glauco Campello conta que Rawet teve uma ;briga injustificável; com Cardozo, talvez por conta de uma mania de perseguição que o fazia acusar o principal calculista de Niemeyer de atitudes ;absolutamente injustificadas;. Rawet foi encontrado morto na casa onde morava em Sobradinho em 1984.
Idas e vindas
Pouco tempo depois de a cidade ser inaugurada, Campello voltou para Recife, atraído pela ;força de gravidade da família e dos velhos amigos;. Mas outra força, em sentido contrário, o trouxe de volta a Brasília. Veio participar da criação do curso de arquitetura da Universidade de Brasília (UnB). Ficou até 1968, quando aderiu à demissão coletiva de mais de 200 professores em represália à perseguição política da Reitoria a alguns colegas. O arquiteto voltou a morar em Brasília uma terceira vez, nos anos 1990, quando assumiu a Presidência do Iphan nacional. A esse tempo, a capital já havia recebido o título de Patrimônio da Humanidade. ;Retomei meu contato com a cidade para liderar uma instituição que cuidava da preservação;, resume. O projeto de Lucio Costa, que ele havia ajudado a desembrulhar, continuava cruzando seu caminho em trechos extensos e intensos.
É preciso ter cuidado, Campello comenta, para não confundir o tombamento de um edifício, de um objeto cristalizado, com o de uma cidade. Ela é um organismo em evolução. Há trechos que vão permanecer imutáveis, porque foram tombados. A Esplanada dos Ministérios e a Praça dos Três Poderes, por exemplo. Ou as escalas (a gregária, a monumental, a bucólica, a residencial). Para o arquiteto modernista, a Brasília real está se desenvolvendo ao mesmo tempo em que o projeto de Lucio Costa mantém as suas qualidades, ressalvadas algumas exceções. Ele cita, por exemplo, os setores hoteleiros Sul e Norte com sua urbanização precária: ;A iniciativa privada constrói os edifícios e não cuida do entorno, das calçadas, dos jardins;.
A propósito dos escândalos políticos e da desigualdade social na capital do país, Campello diz que Brasília tem ;uma grande importância simbólica que está acima de tudo isso;. E que seus maiores problemas, a precariedade de seus representantes e a extrema distância entre ricos e pobres, só se resolverão quando o Brasil resolver seus graves problemas. Afinal, Brasília é o Brasil.