postado em 03/10/2010 06:30
Esta é uma história que poderia ser contada sob vários ângulos. Ótimo momento, até, para se falar de câncer de próstata. Mas não é o clima. Esta história fala de amizade. De ajuda sem interesse. De se doar sem esperar nada em troca. Esta história fala de um zelador e de uma turma de gente formada, a maioria médica, e de como ter ou não ter diploma, nesse caso, em nada alterou. Esta história fala de gente. E não tem nada melhor do que gente. Sobretudo quando gente é de verdade gente. Sem fingir ser gente. Difícil, né? Uma raridade.Esta história se passa no Bloco M da 416 Sul. Lá, um zelador paraibano de voz grave, jeito rude, há 36 anos, começou a escrever a melhor história daquele lugar. Contagiou os moradores do prédio, dos prédios vizinhos, de outras quadras e até gente que nem mora na redondeza.
Não, ele não rabiscou uma só linha dessa história. Ele a protagonizou. Viveu. E foi a melhor coisa que fez na vida, além de cuidar dos prédios, da gente daquele prédio, dos filhos da gente daquele prédio, das bicicletas dos filhos da gente daquele prédio, do jardim daquele prédio. Inácio Loiola Aires de Moura cuidou de tudo e de todo mundo. Hoje, sem filhos, sem mulher ; ele nunca se casou, nunca foi pai ;, é essa gente que também cuida dele.
É preciso voltar a Serra Branca, lá nos confins da Paraíba, para compreender esta história. Foi ali que ela começou a ser escrita, mesmo que o autor dela, que ainda nem sabia ler e escrever, não se desse conta disso. Filho de um vaqueiro e de uma lavadeira, a peleja foi grande para dar comida aos 16 filhos. Inácio sempre teve a certeza de que nada seria fácil.
Aos 21 anos, pegou um ônibus naquele fim de mundo. Destino: Brasília. ;Era a primeira vez que entrava num ônibus. Andava a cavalo, de jegue. Vim na janela, olhando a paisagem;, lembra. Sacolejou, e como sacolejou, por três dias até chegar à capital. Serra Branca ficara para trás. O pai vaqueiro e a mãe lavadeira pediram que ele desse notícia. Inácio nem sabia o que faria exatamente por aqui. Ao chegar, foi direto para a casa de Severino, amigo de infância.
Severino era zelador do Bloco D da 416 Sul. E morava num quartinho debaixo do prédio. ;No dia seguinte, comecei a trabalhar. Fui ser zelador dos blocos P e do Q;, conta Inácio. O rapaz de 21 anos limpou o chão e recolheu o lixo dos moradores. E se sentiu a pessoa mais importante do mundo. Afinal, estava na capital. O emprego era apenas uma substituição, já que o zelador titular estava em férias.
Mas Inácio nunca ficou desempregado. Foi trabalhar numa transportadora no SIA. ;Fiquei ali quatro meses.; E logo veio a grande chance de sua vida. Voltaria para a 416 Sul. Seria, enfim, contratado como zelador do bloco M. Começa aqui o primeiro capítulo da história escrita pelo paraibano que passou a vida inteirinha limpando o que nunca foi dele.
Muita vida
A carteira de trabalho, assinada em 10 de outubro de 1974, não deixa mentir. ;Eu tinha 22 anos e era bem magrinho, pesava 57 quilos`, conta ele, hoje, aos 58. Começava o primeiro dia do resto de toda a vida de Inácio. ;Quando cheguei aqui, a 216 Sul ainda nem existia. Era só mato.; E, mais uma vez, naquela casinha debaixo do bloco, o rapaz magricela de Serra Branca se sentiu importante.
Trinta e seis anos se passaram. As histórias se sucederam. Menino e menina que usavam fralda hoje são pai e mãe. Síndicos vieram e foram embora. Inácio ficou. A moradora Odete Oliveira Monteiro, 75 anos, estava lá desde o começo. Conhece Inácio desde o primeiro dia. ;Só tem uma palavra pra defini-lo: respeito. Minhas filhas eram crianças quando ele chegou, a Mara tinha 6 anos. Hoje tem dois filhos, que adoram o Inácio;.
Mara Angel, 41 anos, a filha, confirma. E se diverte: ;Quando eu era criança, a gente tinha medo do Inácio Ele era brabo, mas ao mesmo tempo era nossa proteção quando descíamos;. E volta no tempo: ;Houve uma época em que tinha um boato de tarado na redondeza. Todo mundo estranho que aparecia, a gente saía correndo e gritava: ;Inácio, o tarado tá aqui;. Era muito legal;.
A filha de Odete cresceu. Virou moça. E saía à noite. ;No dia seguinte, ele dizia: ;A senhorita chegou às cinco da manhã, hein?;. Ele sabia de tudo, vigiava sem bisbilhotar.; Mara se casou. Convidou o zelador para a festa. ;Ele virou amigo do meu marido. Passou a ser da família;, reconhece. ;Hoje, meus filhos, a Maria Eduarda (6) e o Rodrigo (9) adoram ele. Ele cuida como se fosse avô. Leva até à escola.;
A atual síndica, Cláudia Espínola, 45 anos, é sua maior admiradora. ;Na verdade, o síndico é ele. Faz até balancete;, diz. Em tempo: Inácio estudou. Completou o supletivo. Emocionado, ele lembra: ;Ela tinha 9 anos quando eu comecei a trabalhar aqui`. Ela se acaba de rir: ;Ele entrega a idade de todo mundo do bloco;. Inácio foi padrinho de casamento da irmã da síndica.
RealMatismo
Quando tudo parecia quieto na vida do zelador do Bloco M da 416, a reviravolta. Por meio de um médico amigo, que morou, há muito tempo num bloco em frente, Inácio chegou ao Realmatismo. O que é isso? Vamos lá: É a Associação Atlética Amigos do RealMatismo, criada em 1980 ; um grupo de amigos que se reunia para jogar futebol. Detalhe: os pernas de pau todos eram médicos.
Ao longo do anos, o time foi aceitando gente que não vestia jaleco branco. No fim de 1999, Inácio, levado pelo amigo urologista Silvério Freire de Carvalho Filho, hoje com 57 anos, conheceu a turma. Os jogos eram realizados no quintal da casa de um dos médicos, no Lago Sul. Tempos depois, com o aumento do grupo, passou a ser no Clube do Médico, no Setor de Clubes Sul.
E lá estava o zelador, no meio daqueles doutores. Fez bonito. Virou mais um perna de pau na lateral direita. Nasciam os irmãos para toda vida do zelador paraibano. Mais uma vez, Inácio escreve a melhor de sua história. Além de perna de pau, inventou a noite gourmet. Sim, minha gente, o paraibano é metido. Após a pelada, é hora da comilança. E da bebelança. Sim, essa gente de jaleco branco também gosta de uma cachacinha...
Inácio inventou pratos. Preparava, na casinha onde mora, com ajuda financeira dos amigos médicos, pratos de dar água na boca: escondidinho de bacalhau, arroz carreteiro, galinhada... Os encontros, duas vezes por semana, viraram sagrados. Inácio nunca faltou a nenhum. Detalhe: vai dirigindo o próprio carro, um Kadett verde ano 1998, comprado por R$ 11 mil, com economia de toda uma vida.
Por recomendação do atento amigo urologista, Inácio fazia check-up todos os anos. Há um mês, o PSA (exame de sangue que avalia a alteração da próstata) registou índices muito altos. Inácio se preocupou. Contou para Silvério, numa partida de futebol. O médico também achou estranho. Pediu que ele fosse ao consultório dele, no dia seguinte.
Exames de toque (a turma do Realmaltismo garante, às gargalhadas, que nesse dia teria nascido uma relação profunda entre os dois) revelaram o aumento da próstata. Não deu outra. Cirurgia marcada no Hospital de Base. Silvério o operou. Era um tumor em estágio primário. Nem será preciso quimioterapia nem radioterapia. ;Tive tratamento vip lá. Parecia uma autoridade;, conta o zelador. E se diverte: ;As enfermeiras me perguntavam se eu era médico e se já tinha trabalhado no Hospital de Base...;.
A turma do Realmatismo preparou uma grande surpresa para o zelador. Retiveram-no no HBDF por oito dias. E decidiram que reformariam a casa dele debaixo do bloco. O empresário Epaminondas Ribeiro, 39 anos, tocou as obras, com ajuda de toda a turma. Mudaram tudo. Do piso à pintura. Móveis novos ; sofá, cama de casal, tevê de LCD, geladeira, fogão de cinco bocas. Quebraram parede. Fizeram cozinha americana, com tijolo de vidro e tudo mais. Pratos, copos, louça, talheres novos. Paredes decoradas com quadros. Nada ficou igual.
Na segunda-feira, o servidor público Antônio Carlos Sousa, 54, foi buscar o amigo no hospital. Dentro de casa, como surpresa, estavam todos os outros amigos, além dos moradores do bloco. Ao abrir a porta, a gritaria. O paraibano perdeu a voz. Haja coração. Ele nem reconheceu o lugar onde vive há 36 anos. ;Não, não chorei na hora, mas de madrugada, sozinho, chorei demais;, admite.
Fidelidade
O cirurgião pediatra Geraldo Secunho, 68 anos, define o amigo zelador: ;Ele usa esse disfarce de homem durão, mas é tudo fingimento;. Antônio Carlos emenda: ;Por trás dessa aparência rude, dura, desse vozeirão, ele se revela uma pessoa doce, que tem percepção da vida, cuidado com os amigos e é de uma fidelidade a toda prova;.
Manoel Modelli, 56, também médico cirurgião, continua: ;Ele é leal, disponível, transparente;. O dentista Alexandre Benelli, 49, se emociona: ;Ele tem a gente. Nós temos ele;. O bancário Edilson Barbosa, 44, elogia a sinceridade do zelador: ;Ele só diz o que sente e pensa. É sempre claro;.
Sexta-feira, fim de tarde. Essa gente toda estava na casa agora chique de Inácio. Ele ouve seus amigos falarem dele. Deixa a brabeza de lado e admite a fragilidade. ;Eles são minha família. Quem tem amigos não precisa mais de nada.; Pergunto por que ele nunca se casou e nem teve filhos. Ele responde: ;Minha família não é muito de se casar. Tenho dois irmãos solteirões como eu;.
Esta é a história de um homem humilde, que passou a vida inteira limpando o chão de um prédio, e se tornou amigo de uma gente de jaleco branco, de empresários, de servidores públicos. De igual para igual ; literalmente no mesmo time. Esta é uma história que derruba preconceitos, nivela, agrega e comprova: o que muda é a vestimenta, o endereço, o perfume. No fundo, todo mundo é igualzinho. Só humano. Bela lição, Inácio!