postado em 05/10/2010 07:59
Os alunos do Centro de Ensino Fundamental 2 da Estrutural demonstravam pouca intimidade com o lápis. Escrever era um desafio diário para cada um dos meninos e meninas. Rabiscavam o papel sem entender muito bem o poder de transformação do aprendizado. Há um mês, a mudança começou, com a chegada de um novo projeto, o Correio legal. Nele, os pequenos escrevem cartas. O tema é livre e o destinatário também, a não ser por um detalhe: a comunidade é carente, não tem dinheiro para enviar cartas. Professores, coordenadores e a direção improvisaram uma caixa de correio ; bem pintada e desenhada em formato de casa ; onde são depositadas as correspondências. Os estudantes podem enviar bilhetes uns para os outros ou para os funcionários do colégio. Toda segunda e quinta-feira é dia de mandar cartinhas. Às terças e às sextas-feiras, um dos professores se veste de carteiro e distribui alegria pelos corredores do colégio. A direção confeccionou até um boné e uma camiseta personalizados para o ;carteiro;.
A iniciativa surgiu durante uma reunião entre o corpo docente da escola. Discutiam-se as falhas mais sensíveis de aprendizado no CEF 2 da Estrutural e ficou constatado que a deficiência de leitura e de escrita precisava ser sanada com urgência. ;Eles (os alunos) tinham muitas dificuldades em escrever, ler. Era complicado chamar a atenção deles para essas atividades;, relatou a coordenadora do Correio legal, Camylla Portela. ;Os professores começaram a pedir que os estudantes escrevessem cartas para qualquer pessoa da escola. Organizamos a ideia da caixa, do carteiro. Hoje, nem precisamos pedir. Eles escrevem o tempo todo;, orgulha-se.
Além de manter viva essa romântica forma de comunicação ; a carta manuscrita, sufocada pela facilidade dos e-mails ;, há também o efeito pedagógico. Segundo Camylla, a agressividade na escola diminuiu com o projeto. ;No começo, eles queriam mandar cartas com palavrões, com violência. Nós fomos trabalhando isso, mostrando que a escrita tem o poder de transmitir sentimentos melhores. Agora, todos mandam bilhetes de amizade, convidando o outro para passear ou agradecendo por algum gesto;, afirmou Camylla. ;Eles chegavam sempre machucados à diretoria, brigavam. Agora, se estão com raiva, sabem conversar.;
Liberdade
O objetivo maior do projeto não é a correção gramatical. Isso, em sala de aula, já vem sendo trabalhado com os alunos. A meta principal é estimular o poder de se expressar, de transbordar sentimentos por meio de lápis e papel. ;É uma construção da escrita. A intenção é desenvolver o prazer de escrever e não apenas corrigir;, explicou a diretora do CEF 2 da Estrutural, Mariflor Jesus. Ver as letras nascendo do esforço das mãos, o pensamento traduzido em papel, apresentou a cada um deles prazer até então desconhecido.
Uma das campeãs em número de cartas recebidas é Mariflor. Ela guarda mais de 200 em uma pasta e tenta responder a todas. O conteúdo é variado. Algumas chegam sujas de barro. A carência dos pequenos às vezes emociona. ;Diretora, eu queria que você fosse a minha mãe;, escreveu uma aluna. ;Obrigada por pensar no nosso futuro;, agradeceu outra. ;Primeiramente, é a comunidade que faz a escola, depois a escola começa a moldar a comunidade;, acredita Mariflor. ;Nós os incentivamos a não fraquejar, não se sentirem coitadinhos por conta de problemas nem se sentirem inferiores. A intenção é aumentar até mesmo a autoestima deles.;
A professora do 4; ano Regina Teles também já recebeu várias cartas. ;Vocês (professoras) são nossas melhores amigas;, diz uma delas. ;É incrível ver a expectativa por uma resposta, como eles ficam engajados;, contou Regina. Ontem, o pequeno Mateus Sousa de Jesus, 8 anos, depositou uma carta para o irmão mais velho dele. ;Ele é bem grande, tem 10 anos e eu nunca disse que gostava dele. Aí mandei na carta isso: que eu gosto muito dele;, revelou o menino.
Arthur Lima, 11 anos, escolheu se corresponder, esta semana, com Beatriz da Silva, 10. Desenhou corações no envelope, mas garante que a carta fala apenas de amizade. ;Quando alguém conversa muito na sala, faz bagunça, eu mando uma carta pedindo para parar;, explicou Arthur. O carteiro desta semana foi o coordenador Emerson de Souza. ;Vale a pena ver a expectativa, a felicidade deles;, relatou.
Os meninos e as meninas aprenderam também o poder da reivindicação. ;Quando a quadra vai ser pintada? Queremos um campo de futebol com grama;, pedem em cartas à diretora. ;Eu respondo em tom profissional, com respeito, explicando por que as coisas demoram a ser feitas. Por exemplo: já temos a tinta da quadra, agora falta o pintor;, explicou a diretora. ;É incrível vê-los tão politizados.;
Expansão
Com o sucesso do Correio Legal entre os estudantes do ensino fundamental, a direção do CEF 2 pensa em estender o projeto para a Educação de Jovens e Adultos (EJA). O segmento combate o analfabetismo e nessa localidade tem como alunos, em sua maioria, os pais das crianças que estudam durante o dia. A EJA possui cerca de 200 adultos matriculados no CEF 2 no período noturno. O projeto pode, em breve, tornar-se também um meio de melhorar a relação entre pais e filhos. ;Vamos incentivar a produção escrita. Queremos que os adultos escrevam para todos, principalmente para seus filhos;, concluiu a diretora.
"No começo, eles queriam mandar cartas com palavrões, com violência. Nós fomos trabalhando isso, mostrando que a escrita tem o poder de transmitir sentimentos melhores. Agora, todos mandam bilhetes de amizade, convidando o outro para passear ou agradecendo por algum gesto"
Camylla Portela, coordenadora do projeto
;O Correio legal é uma construção da escrita. A intenção é desenvolver o prazer de escrever e não apenas corrigir;
Mariflor Jesus, diretora do CEF 2
Camylla Portela, coordenadora do projeto
;O Correio legal é uma construção da escrita. A intenção é desenvolver o prazer de escrever e não apenas corrigir;
Mariflor Jesus, diretora do CEF 2
O número
1,2 mil
Quantidade de alunos no CEF 2 da Estrutural