postado em 09/10/2010 08:00

Os filhos esqueceram, por um momento, o rosto do pai. A mulher quase deixou de sentir saudades do marido, de tanto que se acostumou à rotineira ausência. Enquanto isso, Severiano, à época um rapaz vistoso de bigode farto e muita força nos braços, construía o chão dos prédios da capital, com o cuidado de quem pinta uma obra-prima.
Ele era um dos responsáveis por fazer o piso dos principais edifícios públicos. Atuava como calafate, um especialista em pisos de madeira. Firmava os tocos, lajotas, lixava cada pedaço. Há um pouco de Severiano, hoje com 92 anos, nos ministérios, no Congresso Nacional e no Palácio da Alvorada, para citar alguns exemplos. ;O trabalho era pesado. Os dias e noites eram iguais. Tudo era poeira e mato;, descreveu.

Idas e vindas
Um amigo contou a Severiano sobre a construção de uma nova cidade. Ali, a luta diária não faltaria. Severiano juntou uma muda de roupas e embarcou no ônibus rumo à ainda utópica Brasília. Como não havia escolas aqui, a família teve de ficar para trás. No começo, ele voltava todo sábado para casa. Chegava a Goiânia à noite e retornava na tarde seguinte para as obras.
Porém, com a proximidade da data prevista para a inauguração de Brasília, o ritmo ficou ainda mais acelerado. Não dava nem tempo de descansar. ;Brasília nasceu do dia para a noite. Só trabalhei na dureza;, conta o bravo candango. Os operários saíam cedo da Vila Planalto e só voltavam ao anoitecer. Juscelino Kubitschek descia de avião para acompanhar o andamento das construções. ;Subia uma poeira danada. O povo todo se juntava para falar com ele, jogar conversa fora. Eu era tímido, olhava de longe.;
Nesse tempo, Isolina começou a vir a Brasília para buscar o dinheiro. Mas nem chegava perto do alojamento onde o marido vivia. ;Na primeira vez, eu entrei na cidade. Os peões ficavam loucos, assoviavam. Não podiam ver mulher. Ficavam igual a macacos. Então, eu só descia do ônibus, pegava o dinheiro e voltava para casa;, relatou Isolina. ;Quando eu chegava a Brasília, meu marido tava todo machucado, com o ombro torto de tanto carregar saco;, completou.
Dona Isolina, 83 anos, 67 deles ao lado de Severiano, é grata a Brasília por vários motivos. Um deles chama a atenção. ;Foi na obra do Palácio da Alvorada que meu marido parou de fumar. Era proibido e ele passava muito tempo lá dentro. A mudança de JK estava para chegar. Acabou esquecendo o vício. Agradeci demais.;
Severiano sofria com a saudade. ;A pior coisa era não ver meus filhos. Eles eram loucos por mim, choravam com a minha partida. Mas foram se acostumando com as idas e vindas, nem davam mais tchau;, lamentou. Somente cinco anos depois, Isolina e os nove filhos vieram fazer companhia para Severiano. ;Nós fomos morar no Gama. Lá não era bom como é hoje. Tinha lama para todo lado;, lembra Isolina, que passou a trabalhar como lavadeira e passadeira. Há 40 anos, eles fixaram residência no Guará, de onde nem pensam em sair.
Quedas de peões
Hoje, quando faz raros passeios fora do Guará, onde vive com Isolina, Severiano lembra do passado com nitidez, apesar da idade avançada. A Esplanada traz as memórias mais vivas. Severiano pertence a um seleto grupo de pioneiros que ainda chamam o Congresso Nacional de ;28;. O apelido nasceu por conta do número de andares do prédio. ;Era muito comum ver peão despencando lá de cima do 28. Já chegava no chão morto. Eu ajudei a fazer o chão, era mais seguro;, afirmou.
Severiano, porém, não viu a inauguração da nova capital. ;Eu tive medo. Diziam que ia ter revolução, que as pessoas que eram contra Brasília iam invadir a cidade e começar uma guerra. Eu tinha muito filho para criar. Além disso, um deles estava doente;, justificou. Com o fim das obras na cidade, Severiano tornou-se um dos primeiros funcionários da Sociedade de Transporte Coletivo de Brasília (TCB).
Começou como servente. Em pouco tempo, aprendeu a profissão de eletricista de bateria. Aposentou-se aos 71 anos, com problemas de saúde. Visitou o médico pela primeira vez aos 70 anos. Sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Teve de operar o coração. Ficou sem mexer sequer os dedos do pé. O candango é um forte. Recuperou-se totalmente. Hoje, só tem pressão alta.
Terra prometida
Dos nove filhos do casal, dois nasceram em Brasília. Todos formaram-se em curso superior, a maioria é servidor público. ;Tem advogado, professor, bancário. É um orgulho danado. Eles tiveram oportunidade aqui e souberam aproveitar;, disse o pai. Atualmente, há mais de 50 pessoas da família de Severiano no DF. São 19 netos, 5 bisnetos, fora os agregados. Na segunda-feira última, o casal completou 67 anos de casado. Teve festa, é claro. ;Meus pais são desbravadores;, resumiu a filha, a advogada Irene, 53 anos.
Severiano e Isolina chamam Brasília de ;terra prometida;. Ele explica: ;Para mim, aqui é o melhor lugar do mundo. Apesar da rinite e bronquite que a poeira me deu;. E ela, que sempre completa as obras do marido, alinhava: ;Comparo a nossa saída da Bahia até chegar a Brasília ao êxodo do povo do Egito. Aqui é a nossa Nova Canaã (a bíblica terra prometida);. A nota final vem de Severiano: ;Já me ofereceram uma sepultura em Goiânia. Mas vamos ficar todos aqui, para a eternidade;.
"Era muito comum ver peão despencando lá de cima do 28 (o Congresso Nacional). Já chegava no chão morto. Eu ajudei a fazer o chão, era mais seguro"
Severiano Vieira da Cruz
Severiano Vieira da Cruz