Cidades

Jogo de empurra entre instâncias jurídicas prejudica o cidadão

Um conflito de competência entre os Juizados Especiais e a Vara da Fazenda Pública está dificultando o acesso das pessoas à Justiça para resolver causas contra o governo ou empresas e estatais, como a CEB e a Caesb

postado em 11/10/2010 09:17
Elenice, há dois anos sem água em casa, por não ter pagado as contas. Ela perdeu o emprego e espera uma decisão judicialHá pouco mais de três meses, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) saiu na frente como um dos primeiros do país a inaugurar os dois Juizados Especiais da Fazenda Pública. A promessa era facilitar o acesso dos brasilienses ao Judiciário em ações, de até 60 salários mínimos, contra o Governo do DF, autarquias, fundações e empresas públicas a eles vinculadas. Entre as causas, estariam questionamentos relacionados à Companhia Energética de Brasília (CEB), à Companhia de Saneamento Ambiental do DF (Caesb) e ao Banco de Brasília (BRB). No entanto, o que deveria acelerar o julgamento e tornar o processo mais econômico ; já que nos Juizados Especiais o trâmite é mais simples, não há cobrança de custas processuais nem exigência de contratação de advogado ;, pelo menos por enquanto, está trazendo prejuízos para os consumidores.

Devido à imposição da Lei de Organização Judiciária do DF (Lei n; 11.697/2008), compete às Varas de Fazenda Pública processar e julgar ações contra sociedades de economia mista das quais o Distrito Federal participe, como a CEB, a Caesb e o BRB. Alguns juízes das Varas de Fazenda Pública passaram a entender, por analogia, que as causas de até 60 salários contra esse tipo de pessoa jurídica poderiam ser apreciadas pelos Juizados Especiais da Fazenda Pública para tornar o processo mais célere. Mas os juizados, por sua vez, julgam-se incompetentes para decidir tais questões, já que, numa interpretação literal da lei de criação dos Juizados Especiais (Lei n; 12.153/2009), não há previsão sobre julgamento de sociedades de economia mista por parte desse juízo.

Se antes o consumidor era obrigado a recorrer à Vara da Fazenda Pública ; inclua-se aí um longo período de espera pelo julgamento e gastos com custas processuais e contratação de advogado ; para pedir um simples ressarcimento por um micro-ondas queimado por queda de luz, por exemplo, agora, a situação está mais complicada. As ações contra a Caesb, a CEB e o BRB viraram uma espécie de batata quente, sendo da Vara da Fazenda Pública para o Juizado Especial e vice-versa. ;Entramos com vários processos contra o BRB na Vara de Fazenda Pública, nos valores entre 20 e 60 salários, e que foram declinados (enviados) para o Juizados. E o Juizado vai se dar como incompetente;, lamenta o presidente do Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa das Relações de Consumo (Ibedec), Geraldo Tardin.

No Judiciário, quando ocorre esse tipo de divergência sobre quem deve julgar uma ação, suscita-se um conflito de competência, que deve ser dirimido por uma das três Câmaras Cíveis do TJDFT. ;O primeiro deles, numa ação contra a CEB, foi provocado pelo 1; Juizado Especial da Fazenda Pública e julgado, há algumas semanas, pela 3; Câmara Cível, que decidiu por unanimidade pela competência da Vara de Fazenda Pública;, explica o juiz assistente da Presidência do TJDFT, James Eduardo Oliveira. Ou seja, tudo continua como antes.

Um conflito de competência entre os Juizados Especiais e a Vara da Fazenda Pública está dificultando o acesso das pessoas à Justiça para resolver causas contra o governo ou empresas e estatais, como a CEB e a CaesbSegundo ele, por enquanto, ainda é prematuro dizer qual o posicionamento do TJ sobre o assunto. ;Há conflitos de competência distribuídos entre as três câmaras. Só o 1; Juizado Especial da Fazenda Pública suscitou mais oito conflitos. Mas acredito que até o fim do ano essa questão esteja pacificada;, espera Oliveira.

Ele acrescenta que, mesmo após provocação do conflito de competência, as situações emergenciais, ou seja, os pedidos de liminares, são apreciadas, sem prejuízo para as partes. ;Nessa situação, o desembargador pode nomear um dos juízos (Vara ou Juizado Especial da Fazenda Pública) para apreciar as liminares, mas isso ainda demora. O que antes se conseguia em até dois dias, agora, leva no mínimo cerca de duas semanas. Isso só para o julgamento das liminares. Depois, o processo fica parado aguardando a decisão sobre os conflitos de competência;, observa o coordenador do Núcleo de Defesa do Consumidor (Nudecon) da Defensoria Pública do DF, Alexandre Gianni.

Dívida
A medida de julgar, pelo menos, as liminares é mais recente. Nos primeiros conflitos de competência, a apreciação dos pedidos urgentes não ocorreu. Em razão disso, vários consumidores foram prejudicados. Após ficar três meses sem água e também sem nenhuma decisão da Justiça, o pintor de móveis Idílio Miranda de Carvalho, 38 anos, teve que vender o carro, que utilizava para o trabalho, para negociar uma dívida com a Caesb e ter o serviço restabelecido. ;O lote que comprei da Terracap tinha uma dívida do antigo morador. Negociei o débito de quase R$ 4 mil. Quando quitei a última parcela, fui surpreendido com nova dívida, no valor de R$ 4.405. Como não pudemos assumir o gasto, eles cortaram a água;, conta Idílio.

Já a viúva Elenice Barbosa da Silva Oliveira, 45 anos, teve o pedido de liminar julgado improcedente e, agora, aguarda a decisão sobre o conflito de competência. Ela está há dois anos e meio sem fornecimento de água em sua casa, no Recanto das Emas, desde que o serviço foi interrompido pela Caesb. ;As cobranças estavam elevadas, sendo que não havia motivo pois eu passava o dia trabalhando. Perdi o emprego e paguei enquanto pude. Procurei a Caesb para negociar o débito, mas a companhia disse que não poderia parcelar a dívida. Não tinha como pagar R$ 800 à vista. Então, eles cortaram o serviço;, queixa-se Elenice.

Casos como esses exemplificam a inquietação da Defensoria Pública do DF. ;A nossa preocupação é com a demora na prestação da tutela jurisdicional em favor de consumidores carentes, muitos deles idosos ou com crianças, que por vezes têm o seu fornecimento de água ou de luz cortado indevidamente e encontram no judiciário sua última esperança de terem seus direitos respeitados;, avalia o defensor público Alexandre Gianni.

Procuradores não podem fechar acordos
Outro fato que tem impedido o pleno funcionamento dos Juizados Especiais de Fazenda Pública é a ausência de lei distrital que autorize os procuradores do DF a celebrarem acordos. Isso porque os acordos nos Juizados de Fazenda Pública envolvem, na maioria das vezes, a disposição sobre verbas públicas ; seja para recebimento (de impostos, multas etc.) seja para o pagamento (de indenizações, ressarcimentos etc.) ;, o que só é possível caso haja lei específica autorizando esse procedimento. ;Com a ausência da lei, uma das principais vantagens do Juizado, que é estimular a realização de acordos, acaba sendo inviabilizada;, completa Gianni.

Segundo o juiz especialista em Juizados Especiais Ricardo Cunha Chimenti, a Procuradoria-Geral da República poderia ser provocada para verificar se cabe uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o dispositivo da Lei Orgânica do DF. ;São duas questões que devem ser analisadas: a primeira, se uma lei que impede o cidadão comum de se valer dos Juizados Especiais Cíveis para processar uma sociedade de economia mista não é uma afronta direta ao artigo 98 da Constituição Federal, que prevê a criação do Juizados como um sistema amplo de acesso à Justiça. A segunda, se uma lei federal, de abrangência local, pode afrontar uma lei federal, de caráter nacional. Mas o ideal nisso tudo é que o próprio TJDFT defina;, avalia Chimenti.

Neste mês, a ministra Corregedora Nacional de Hystula, Eliana Calmon, se reunirá com todos os desembargadores corregedores dos tribunais de Justiça. Entre os temas principais, está o Juizado Especial da Fazenda Pública.

Após três meses sem água e sem decisão da Justiça, Idílio de Carvalho teve que vender o carro para negociar a dívida com a Caesb

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