postado em 13/10/2010 08:21
Era feriado de Nossa Senhora de Aparecida em 1920 quando veio ao mundo Jovelina Ferreira de Souza Nascimento. O primeiro ar que respirou foi o da pequena cidade Sítio d;Abadia, interior de Goiás. ;Era o fim do mundo;, lembra Jovelina, sentada à mesa de uma casa de festas onde vira e mexe alguém vem cumprimentá-la e felicitá-la pelo aniversário de 90 anos. Convida um dos amigos para ;tomar uma cervejinha; dali a pouco. A companhia do tempo a tornou mais suave ; garantem os filhos ; e mais brincalhona. Perdeu preocupações, ganhou netos e recentemente bisnetas gêmeas. Jovelina é assertiva quando faz o balanço da vida que teve até aqui: ;Sou completamente realizada;. Ela conseguiu o que tanto teimou para ter: sete dos oito filhos e 14 netos têm diplomas de nível superior. Todos são formados pela Universidade de Brasília (UnB).Foi para garantir a educação dos filhos ; teve 12, mas quatro não sobreviveram ; que insistiu com o marido, Clóvis, para trocar a roça por uma cidade maior capaz de garantir uma vida melhor para a prole. Clóvis fechou o comércio que tinha em Sítio d;Abadia e partiu para Formosa (GO), onde duas das filhas já estudavam. Apesar de ser uma cidade maior, Formosa ainda não atendia às exigências da resoluta Jovelina. ;Ela sempre foi extremamente comprometida com a nossa educação. Sempre disse que o caminho para uma vida melhor era estudar. Minha mãe foi uma mulher à frente do tempo dela;, comenta a filha Maria de Fátima, professora formada pela UnB.
Era 1970 quando a família chegou a Brasília e se fixou em Sobradinho, onde Jovelina mora até hoje. ;Quem me disser que veio para Brasília no começo e não sofreu, eu digo que está mentindo. A vida era muito difícil, os aluguéis caros. Havia muita poeira;, relembra a nonagenária. A figura mitológica de Juscelino Kubitschek também exerceu seus encantos sobre Jovelina. ;Eu vi JK montado em cima de um trator;, conta, entusiasmada.
Foi batalhando muito que ela e o marido conseguiram manter os filhos focados e direcionados rumo à universidade. Nem mesmo os quatro filhos do primeiro casamento de Clóvis escaparam da obsessão de Jovelina. ;Se eles não queriam estudar, eu ia pessoalmente buscá-los em Formosa e os trazia para cá. Fazia questão;, diz. ;Mesmo com as dificuldades, ela tinha essa certeza que só através da educação que a gente teria possibilidades na vida. E realmente, ela não estava errada!”, diz Maria de Fátima. Dos oito filhos que teve com o marido, falecido em 1999, aos 84 anos, apenas um não se formou. ;Não o fez porque não quis, porque ela insistiu;, garante Maria de Fátima.
Não bastou também entrar e se graduar. Para a matriarca, era preciso ter desempenho exemplar. A filha mais velha, Neuma, garante que nota baixa sequer era perdoado pela mãe. ;Ela achava que pelo fato de nós virmos de uma família mais humilde, de uma cidade pequena, nós tínhamos que nos destacar. Nota baixa era sinônimo de punição;, explica. A obstinação da mãe em garantir um futuro melhor para a família começou a render frutos logo após a mudança para a nova capital. As irmãs mais velhas, Euma e Neuma, já eram professoras formadas e ajudaram a custear os gastos da casa da mãe. ;Meus filhos são muito bons pra mim. Hoje, tomam conta de tudo;, diz Jovelina.
Herança
A teoria de Jovelina foi passada dos filhos para os netos. Até hoje, 14 deles já entraram na UnB. João Henrique Nascimento Dias, 23 anos, se formou recentemente em ciências políticas. A vovó (e para ele também madrinha) Jovelina estava na plateia quando seu nome foi chamado para receber o diploma. ;Minha mãe me passou o que minha avó ensinou a ela. É uma mulher de muita força. Ela foi visionária em uma época em que as mulheres mal saíam de casa. Até hoje faz questão de votar;, diz João. ;Ela sofre quando vê um neto estudando para o vestibular. Dá a maior força;, completa. Josemar Nascimento se orgulha de o filho ter passado em duas universidades federais para cursar agronomia. Escolheu, como todo resto da família, a UnB e se forma no ano que vem.
Ver a família trilhar um futuro com um diploma debaixo do braço foi a maneira que Jovelina encontrou de se realizar já que ela mesma não pode dar sequência aos estudos. ;Era eu quem cuidava da casa, lavava, fazia comida. Não fosse eu, quem ia fazer isso?;, questiona. Mas não se engane. Se a ela foi impedido o direito de se sentar em uma sala de aula, a sala de estar de casa serviu, e continua servindo, para que ela leia sobre qualquer coisa. ;Minha mãe está sempre com um livro. Todos os dias lê o jornal ou revistas de atualidades;, afirma Clóvis Filho, matemático e funcionário público. Histórias de Juscelino Kubitschek, biografias ou poesias figuram entre as leituras preferidos da matriarca.
Ao falar da mãe, é difícil um filho de Jovelina que não se emociona. ;Eu queria ser filho da minha mãe um trilhão de vezes. Ela é de um caráter, de uma força, que só sendo filho dela para saber;, diz Josemar. Abraçada à mãe, Euma atesta. ;Ela é uma guerreira;. Neuma, com quem a mãe mora, não contém as lágrimas. ;É uma mãe muito amiga. Ela sempre foi muito presente, muito cuidadosa, muito preocupada com a nossa educação. Nada passa despercebido para ela. Toda a vida ela soube o que os filhos estavam fazendo;, explica a pedagoga e bibliotecária. Notoriamente o xodó da mãe, o filho Eumar retribui o carinho: ;Minha mãe é tudo;. Nenhum deles sabe dizer, exatamente, de onde veio a determinação da mãe e o empenho dela em ser rodeada por filhos acadêmicos. Clóvis Filho talvez resuma bem: ;É um desses dons de Deus, não sei explicar;.
Destino
A união de Jovelina e Clóvis merece um capítulo à parte. ;Eramos namorados. Mas minha mãe não o aceitava de jeito nenhum;, lembra Jovelina. Para impedir os planos do casal, Jovelina foi mandada para Januária (MG), a 500km de distância, para estudar. Nos quatro anos em que ficaram separados, Clóvis ficou noivo e se casou com a prima de Jovelina. A primeira mulher de Clóvis faleceu durante o parto do quarto e último filho. Clóvis e Jovelina se reencontraram e prevaleceu o amor entre os dois. ;Ele era o amor da minha vida. Ele também era completamente apaixonado por mim;, conta. Quando a mãe de Jovelina morreu, seu pai se casou com a irmã de Clóvis. ;Meu pai era, ao mesmo tempo, sogro e cunhado do Clóvis;, explica.