Roberta Machado
postado em 19/10/2010 08:29
As marcas deixadas nas matas do Distrito Federal durante quatro meses sem chuva finalmente começam a ser amenizadas. Como um remédio há muito aguardado, a água chegou discreta, e aos poucos nutre as folhas que brotam dos galhos retorcidos e lava as cinzas das árvores atingidas pelo fogo. O verde vivo das plantas rasteiras colore a paisagem cinzenta a cada pancada de chuva que molha o solo seco castigado pelo sol. O processo de recuperação do cerrado é lento, mas, mesmo com a demora para a consolidação da época das chuvas, as matas conseguiram em pouco tempo demonstrar que ainda têm muita vida pela frente.A tradicional seca vivida todos os anos pelos habitantes do Planalto Central não costuma afetar as árvores retorcidas do cerrado, que estendem até as mais distantes profundezas suas raízes em busca de todos os nutrientes que a terra possa lhes oferecer. Esse efeito cria uma espécie de floresta invertida, que pode parecer abalada na superfície, mas esconde uma extensão ainda maior no subsolo, cheia de vida e aguardando pacientemente pela chegada das chuvas. Mas este ano a seca não veio sozinha: a falta de umidade trouxe consigo o fogo, que usou as áreas verdes como combustível para avançar no território do DF.
Desde janeiro, foram quase 3 mil ocorrências de incêndios florestais registradas pelo Corpo de Bombeiros, totalizando uma área de aproximadamente 35 mil hectares afetados pelas labaredas. "Este ano foi terrível, praticamente todas as unidades de conservação sofreram incêndios. O primeiro fator de ocorrência foi o homem", destaca o Major Ricardo Vianna, do Grupamento de Proteção Ambiental do Corpo de Bombeiros. O ritmo de surgimento dos focos diminuiu, mas os bombeiros continuam em alerta para evitar novas perdas da flora brasiliense causadas pelo fogo.
"Agora a tendência é queimar áreas menores e numa propagação mais lenta, pois a vegetação está molhada", prevê o major Vianna. Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), esta semana será marcada por chuvas diárias no DF. Seca, assegura o Inmet, só depois de abril de 2011.
A vegetação também faz o que pode para se proteger: a maioria das árvores do cerrado cria uma casca grossa de cortiça que isola os tecidos internos do vegetal em caso de incêndios. Plantas como a sempre-viva e a gonfrena, bem-adaptadas ao clima do Planalto Central, são estimuladas a florir depois de um fogo rápido. Mas mesmo sendo um dos responsáveis pela renovação das matas, o fogo causado por humanos é sem dúvida um vilão ambiental. "Estudos indicam presença de fogo de origem humana há pelo menos 10 mil anos. Isso favorece as plantas de ciclo curto, como gramíneas, mas elas não precisam do fogo para viver", esclarece João Santana, Superintendente de Gestão de Áreas Protegidas do Instituto Brasília Ambiental (Ibram).
As árvores castigadas pelas chamas parecem tirar o maior proveito possível da discreta umidade de Brasília. Os galhos, antes nus, escondem-se aos poucos sob novas folhas e servem de moradia para as aves que retornam, agora que o fogo não é mais uma ameaça. As raras orquídeas florescem na terra queimada, acompanhadas das samambaias que brotam espiraladas em xaxins enegrecidos pelas chamas.
Essa rápida recuperação é uma característica do cerrado, cujas flores podem desabrochar mesmo no período de seca. ;Algumas espécies são muito rápidas, ganham folhas novas logo na primeira chuva;, ensina Carmen Regina de Araújo Correia, professora de engenharia florestal da Universidade de Brasília (UnB). "A capacidade de recuperação é genética. A planta tem que sobreviver a seis meses de seca, então qualquer água é o suficiente para ela." Após um incêndio ou um longo período sem chuvas, a aparência de algumas árvores secas pode enganar: mesmo sem produzir flores ou frutos, elas mantêm as atividades vitais em um estado latente, guardando a vida para a época de umidade.
Direto das cinzas
Quanto maior a destruição causada pelo fogo, mais a capacidade de recuperação do cerrado é posta à prova. Somente no Parque Nacional de Brasília, foram 11.200 hectares de mata protegida carbonizados, o equivalente a 26% da reserva ambiental perdidos em 10 dias. A área atingida pelo fogo não sofria um incêndio há cerca de 20 anos, o que contribuiu para o acúmulo de folhas e galhos secos que serviram de combustível para as chamas. Espécies frágeis como o alecrim e a trembleia não tiveram chance contra o fogo, e a maior parte da mata ciliar do Parque Nacional foi danificada.
João Batista, técnico ambiental do Parque Nacional, calcula que o parque leve de 15 a 20 anos para se recompor do trauma sofrido no último incêndio, pois o solo precisa recuperar os micro-organismos perdidos para que o ambiente seja novamente equilibrado. O técnico ambiental ainda alerta que algumas das árvores de pé na paisagem cinzenta não devem sobreviver à recuperação. Os exemplares mais jovens ; com menos de 10 anos ; ainda não tiveram tempo para desenvolver a grossa casca que protege as espécies do cerrado do fogo. Ainda resistem de pé, mas sua cobertura é formada por puro carvão, incapaz de transportar a preciosa seiva pelo tronco.
Uma espessa camada de cinza ainda cobre grande parte do parque, mas a paisagem não está monocromática ; o chão cinzento não é capaz de esconder as moitas e as flores que renascem como se nada tivesse ocorrido. "Sabemos que, mesmo tendo uma grande perda, tanto na flora quanto na fauna, podemos contar com o poder de recuperação das árvores do cerrado. As cinzas têm grande parte de potássio, o que ajuda as gramíneas a crescerem", explica João Batista. Em mais algumas semanas de chuva, o charco tradicional da mata ciliar deve substituir o solo que hoje parece formado de cinzas, e com alguma paciência, as palmeiras voltarão ao seu estado original. ;Esse é literalmente o renascimento das cinzas;, compara.
Fogo sem trégua
O Corpo de Bombeiros registrou 2.978 ocorrências de incêndio florestal até o dia 15 deste mês. O índice corresponde a uma média aproximada de 10 novos focos por dia em 2010. O mês campeão de incêndios foi agosto, com 767 ocorrências.