postado em 23/10/2010 08:00
O retrato mostra uma mulher envelhecida. Cada linha estampada no rosto é uma tatuagem do tempo. Ali não sobra fragilidade. São marcas da intensidade de 99 anos de paixão. Paixão pela vida, a dela mesma e a dos outros. Os olhos, porém, permanecem jovens. A senhora da foto é Philomena Leporoni Mazzola. Tinha nome e sangue de italiana, mas era extremamente brasileira. Gostava de afagar. Mas também, quando era preciso, de falar um bom palavrão. Era verdadeira, super humana. Nascida em Ribeirão Preto (SP), chegou a Brasília em 1957, quando a cidade era apenas um sonho empoeirado.Tentou ganhar a vida nessas bandas como dona de mercearia e de hotel ; leia-se um barraco de madeira, com corredor longo e cheio de camas. Mas não durou muito tempo no ramo. Logo revelou sua verdadeira vocação: parteira e mãe de todos. Mais de 2 mil filhos de candangos nasceram pelas mãos de Philomena. Ela nunca estudou medicina. Fazia tudo com ensinamentos que a vida lhe trouxe. Trazia as crianças ao mundo com facilidade, como se apresentar alguém à vida fosse um simples dom.
Fundou também uma das primeiras (se não a primeira) creche da nova capital, a Núcleo Bandeirante, em funcionamento ainda hoje, quase 10 anos depois da morte de Philomena. O local mantém-se aberto graças a esforços da família. As candangas não tinham onde deixar os filhos quando iam trabalhar. Recorriam então à Vó Philomena, como ela ficou conhecida.
A pioneira cuidava dos meninos e das meninas na própria casa. As mães, porém, não voltavam para buscar os filhos. E assim Philomena criou 14 meninos e meninas que não haviam saído de seu ventre. ;Todos eram do Núcleo Bandeirante. Muitos nasceram na minha mão. A mãe queria jogar fora, eu trazia para minha casa. Graças a Deus criei 14, tudo deu gente. Eu tenho uma menina casada com japonês, outro mora em São Paulo, tem vida boa;, relatou, em entrevista ao Arquivo Público do DF.
Imigrante
Os caminhos de Brasília e Philomena cruzaram-se de forma imprevisível. Os pais dela, italianos, chegaram no fim dos anos 1890 para o Brasil, de navio. ;Eles vieram como imigrantes. Uma família grande naquele tempo, onde que ia arrumar dinheiro? Então eles vieram como imigrantes e ficaram satisfeitos. Àquela época vieram 80 famílias no navio, é daquele jeitinho que estava na novela;, relatou, ainda no depoimento ao arquivo, fazendo referência à novela Terra Nostra, que à época da entrevista estava sendo exibida pela Rede Globo.
Philomena, porém, nasceu no Brasil, em 1903, como consta no Arquivo Público. Cresceu em São Paulo, onde sua família desembarcou. Casou-se com Olívio, também filho de estrangeiros. Tiveram quatro filhos. A caçula morreu aos 15 anos, depois de sentir fortes dores de cabeça. Philomena via nas crianças que criava a lembrança da filha perdida.
À época do falecimento, ela decidiu viajar e foi a Minas Gerais, onde tinha parentes. Lá, soube de uma reunião com o então governador, Juscelino Kubitschek. O homem perguntou: ;Quem quer ir para Brasília?;. E ofereceu isenção de imposto para quem quisesse montar comércio na nova capital.
Assim Philomena veio parar em solo brasiliense, no mesmo ano, 1957. Chegou sozinha, sem o marido. ;Ele disse: ;Se você gostar, eu gosto;. E eu pensei: se ele não gostar, vou sozinha;, contou, independente. Alguns parentes criticaram a atitude de Philomena. Pensavam que uma mulher era frágil demais para sobreviver só em uma cidade em construção. ;Meu povo veio da Europa, num sabia falar o português e num morreu ninguém;, dizia pioneira, forte. O marido chegou a morar em Brasília, veio meses depois, mas morreu logo, deixando Philomena viúva.
;Minha avó era uma aventureira;, resumiu a neta Áurea Mazzola, 54 anos, desde os 2 moradora de Brasília. Hoje é Áurea quem está à frente do legado familiar, a Creche Núcleo Bandeirante. Philomena é uma das candangas mais importantes da história de Brasília. Lutou como poucas pela fixação do Núcleo Bandeirante, quando o governo pensava em acabar com a antiga Cidade Livre. ;Era bacana, de mulher era só eu;, dizia Philomena.
Continuidade
Depois de muito batalhar e discutir com políticos, quando conseguiu a vitória, ao lado de outras figuras memoráveis, Philomena preparou uma festa pela fixação. A pioneira seguia pelas ruas do Núcleo Bandeirante com seu ;caderninho de ouro;. Nele, anotava as promessas de doação de dinheiro para fazer a celebração. Percorreu cada comércio, inclusive os prostíbulos. Áurea lembra com saudades a personalidade marcante de Philomena: ;Ela entrava em boate, prostíbulo. Não tinha preconceito. Quando as prostitutas ficavam doentes, ela dava a maior assistência. Era uma figura;.
A brava candanga deixou suas marcas no Núcleo Bandeirante. Administrou a creche até completar 99 anos. Morreu dentro dela, depois de pedir um copo de água. ;Ela tinha um amor imenso pelas crianças. Queria cuidar de todos os meninos de rua;, lembrou a neta.
Hoje, a instituição atende 120 crianças. Recebe gente pequena, do primeiro mês de vida aos 6 anos, com todo tipo de histórico familiar. Paga quem pode. Hoje, Áurea enfrenta problemas com o Governo do Distrito Federal para dar continuidade ao trabalho social, na 3; Avenida do Núcleo Bandeirante. A família nunca possuiu a escritura do terreno ocupado pela creche. ;Vivemos sob a ameaça de ter de sair daqui a qualquer momento.;
A morte de Philomena, em 2002, não foi o fim. A neta cuida do local com o mesmo empenho da avó. ;Acho que está no sangue. Minha avó nunca ganhou nem um centavo com isso daqui. Eu também não. Só trabalho. Mas não consigo imaginar outra vida.; Philomena morreu sem realizar um sonho: construir uma fábrica de fraldas. Se pudesse, teria vivido mais 200 anos. E como teria sido bom.
; HOMENAGEM NO ARQUIVO PÚBLICO
em homenagem à presença feminina na construção de Brasília, lançado em setembro. Cada mês traz três fotografias, acompanhadas de breves resumos sobre a importância de cada uma delas para a história da capital. Philomena estampa o mês de outubro, junto de Olinda da Rocha Lobo, uma das primeiras professoras do DF, e Palmerinda Vidal, escritora que ajudou na campanha de Juscelino Kubitschek.
Há poucas referências às mulheres na maioria dos documentos do Arquivo Público, ligado à Secretaria de Cultura e criado para preservar o passado. Para produzir o calendário, criou-se uma comissão de pioneiras e pioneiros que começaram o resgate desses relatos.
O trabalho foi árduo, até chegar aos 36 nomes que aparecem nas páginas. Os pesquisadores respeitaram critérios na hora da escolha: a mulher pioneira tinha de ter chegado a Brasília e ter trabalhado em qualquer atividade com destaque, até o ano da inauguração da cidade.