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Philomena Leporoni Mazzola , a mãe de todos

Philomena Leporoni Mazzola chegou em 1957, sozinha, por acreditar no sonho de JK. Morreu em 2002, mas continua presente no imaginário local. Foi uma das primeiras parteiras de Brasília e fundou a Creche Núcleo Bandeirante, que manteve sem qualquer incentivo e hoje é dirigida por sua neta

postado em 23/10/2010 08:00
Primeiros tempos da creche: várias crianças acabaram morando no local, deixadas pelos paisFoto de dona Philomena, que fundou e manteve a Creche Núcleo BandeiranteO retrato mostra uma mulher envelhecida. Cada linha estampada no rosto é uma tatuagem do tempo. Ali não sobra fragilidade. São marcas da intensidade de 99 anos de paixão. Paixão pela vida, a dela mesma e a dos outros. Os olhos, porém, permanecem jovens. A senhora da foto é Philomena Leporoni Mazzola. Tinha nome e sangue de italiana, mas era extremamente brasileira. Gostava de afagar. Mas também, quando era preciso, de falar um bom palavrão. Era verdadeira, super humana. Nascida em Ribeirão Preto (SP), chegou a Brasília em 1957, quando a cidade era apenas um sonho empoeirado.

Tentou ganhar a vida nessas bandas como dona de mercearia e de hotel ; leia-se um barraco de madeira, com corredor longo e cheio de camas. Mas não durou muito tempo no ramo. Logo revelou sua verdadeira vocação: parteira e mãe de todos. Mais de 2 mil filhos de candangos nasceram pelas mãos de Philomena. Ela nunca estudou medicina. Fazia tudo com ensinamentos que a vida lhe trouxe. Trazia as crianças ao mundo com facilidade, como se apresentar alguém à vida fosse um simples dom.

Fundou também uma das primeiras (se não a primeira) creche da nova capital, a Núcleo Bandeirante, em funcionamento ainda hoje, quase 10 anos depois da morte de Philomena. O local mantém-se aberto graças a esforços da família. As candangas não tinham onde deixar os filhos quando iam trabalhar. Recorriam então à Vó Philomena, como ela ficou conhecida.

A pioneira cuidava dos meninos e das meninas na própria casa. As mães, porém, não voltavam para buscar os filhos. E assim Philomena criou 14 meninos e meninas que não haviam saído de seu ventre. ;Todos eram do Núcleo Bandeirante. Muitos nasceram na minha mão. A mãe queria jogar fora, eu trazia para minha casa. Graças a Deus criei 14, tudo deu gente. Eu tenho uma menina casada com japonês, outro mora em São Paulo, tem vida boa;, relatou, em entrevista ao Arquivo Público do DF.

Imigrante
Os caminhos de Brasília e Philomena cruzaram-se de forma imprevisível. Os pais dela, italianos, chegaram no fim dos anos 1890 para o Brasil, de navio. ;Eles vieram como imigrantes. Uma família grande naquele tempo, onde que ia arrumar dinheiro? Então eles vieram como imigrantes e ficaram satisfeitos. Àquela época vieram 80 famílias no navio, é daquele jeitinho que estava na novela;, relatou, ainda no depoimento ao arquivo, fazendo referência à novela Terra Nostra, que à época da entrevista estava sendo exibida pela Rede Globo.

Philomena, porém, nasceu no Brasil, em 1903, como consta no Arquivo Público. Cresceu em São Paulo, onde sua família desembarcou. Casou-se com Olívio, também filho de estrangeiros. Tiveram quatro filhos. A caçula morreu aos 15 anos, depois de sentir fortes dores de cabeça. Philomena via nas crianças que criava a lembrança da filha perdida.

À época do falecimento, ela decidiu viajar e foi a Minas Gerais, onde tinha parentes. Lá, soube de uma reunião com o então governador, Juscelino Kubitschek. O homem perguntou: ;Quem quer ir para Brasília?;. E ofereceu isenção de imposto para quem quisesse montar comércio na nova capital.

Assim Philomena veio parar em solo brasiliense, no mesmo ano, 1957. Chegou sozinha, sem o marido. ;Ele disse: ;Se você gostar, eu gosto;. E eu pensei: se ele não gostar, vou sozinha;, contou, independente. Alguns parentes criticaram a atitude de Philomena. Pensavam que uma mulher era frágil demais para sobreviver só em uma cidade em construção. ;Meu povo veio da Europa, num sabia falar o português e num morreu ninguém;, dizia pioneira, forte. O marido chegou a morar em Brasília, veio meses depois, mas morreu logo, deixando Philomena viúva.

;Minha avó era uma aventureira;, resumiu a neta Áurea Mazzola, 54 anos, desde os 2 moradora de Brasília. Hoje é Áurea quem está à frente do legado familiar, a Creche Núcleo Bandeirante. Philomena é uma das candangas mais importantes da história de Brasília. Lutou como poucas pela fixação do Núcleo Bandeirante, quando o governo pensava em acabar com a antiga Cidade Livre. ;Era bacana, de mulher era só eu;, dizia Philomena.

Continuidade
Depois de muito batalhar e discutir com políticos, quando conseguiu a vitória, ao lado de outras figuras memoráveis, Philomena preparou uma festa pela fixação. A pioneira seguia pelas ruas do Núcleo Bandeirante com seu ;caderninho de ouro;. Nele, anotava as promessas de doação de dinheiro para fazer a celebração. Percorreu cada comércio, inclusive os prostíbulos. Áurea lembra com saudades a personalidade marcante de Philomena: ;Ela entrava em boate, prostíbulo. Não tinha preconceito. Quando as prostitutas ficavam doentes, ela dava a maior assistência. Era uma figura;.

A brava candanga deixou suas marcas no Núcleo Bandeirante. Administrou a creche até completar 99 anos. Morreu dentro dela, depois de pedir um copo de água. ;Ela tinha um amor imenso pelas crianças. Queria cuidar de todos os meninos de rua;, lembrou a neta.

Hoje, a instituição atende 120 crianças. Recebe gente pequena, do primeiro mês de vida aos 6 anos, com todo tipo de histórico familiar. Paga quem pode. Hoje, Áurea enfrenta problemas com o Governo do Distrito Federal para dar continuidade ao trabalho social, na 3; Avenida do Núcleo Bandeirante. A família nunca possuiu a escritura do terreno ocupado pela creche. ;Vivemos sob a ameaça de ter de sair daqui a qualquer momento.;

A morte de Philomena, em 2002, não foi o fim. A neta cuida do local com o mesmo empenho da avó. ;Acho que está no sangue. Minha avó nunca ganhou nem um centavo com isso daqui. Eu também não. Só trabalho. Mas não consigo imaginar outra vida.; Philomena morreu sem realizar um sonho: construir uma fábrica de fraldas. Se pudesse, teria vivido mais 200 anos. E como teria sido bom.

; HOMENAGEM NO ARQUIVO PÚBLICO
Áurea Mazzola, que tomou a frente do empreendimento filantrópico de Philomena: Ela queria cuidar de todos os meninos de ruaem homenagem à presença feminina na construção de Brasília, lançado em setembro. Cada mês traz três fotografias, acompanhadas de breves resumos sobre a importância de cada uma delas para a história da capital. Philomena estampa o mês de outubro, junto de Olinda da Rocha Lobo, uma das primeiras professoras do DF, e Palmerinda Vidal, escritora que ajudou na campanha de Juscelino Kubitschek.

Há poucas referências às mulheres na maioria dos documentos do Arquivo Público, ligado à Secretaria de Cultura e criado para preservar o passado. Para produzir o calendário, criou-se uma comissão de pioneiras e pioneiros que começaram o resgate desses relatos.

O trabalho foi árduo, até chegar aos 36 nomes que aparecem nas páginas. Os pesquisadores respeitaram critérios na hora da escolha: a mulher pioneira tinha de ter chegado a Brasília e ter trabalhado em qualquer atividade com destaque, até o ano da inauguração da cidade.

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