Cidades

Medo de contaminação pela superbactéria KPC ronda hospitais

Apesar de afirmarem que não há motivo para pânico, especialistas admitem ser grave a quantidade de contaminação pela superbactéria KPC em Brasília. Surto evidencia o descontrole sobre consumo de antibióticos e cuidados com a higiene

Adriana Bernardes
postado em 24/10/2010 08:19

Maria das Graças Rodrigues teve que esperar seis horas por uma internação no Hospital de Santa Maria, para se submeter a drenagem nos pulmões

Surto de Klebsiella pneumoniae carbapenemase (KPC) nos hospitais públicos e privados do Distrito Federal colocou o país em alerta e impôs uma rígida rotina de higienização nas unidades de saúde. A falta de conhecimento sobre o micro-organismo assusta os doentes e familiares e preocupa os profissionais de saúde. Só na capital da República, ele matou 18 e infectou 183 pessoas desde janeiro. É o maior número de registros do país, que tem casos confirmados também em São Paulo, Paraná, Paraíba, Ceará, Pernambuco, Goiás, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Em Londrina (PR), onde há dados mais precisos, a taxa de mortalidade dos infectados é de 85%.

O governo do DF é o único a admitir o surto da superbactéria, mas isso não significa que o problema seja mais grave aqui. Esse tipo de infecção hospitalar não é de notificação compulsória, por isso, o quadro no país pode ser bem mais preocupante do que aparenta. O governo de São Paulo informou 70 casos de infecção por KPC e 24 mortes, incluindo os registros de 2009. No Paraná, são 24 ocorrências, com uma morte. O governo do Ceará investiga 150 casos suspeitos no Laboratório Central de Fortaleza e, na Paraíba, há 18 pacientes infectados desde abril de 2009.

Esta semana, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) divulgará novas regras para comercialização de antibióticos. A partir do fim de novembro, a receita passa a ser obrigatória e uma das vias ficará retida. A agência vai publicar ainda uma resolução que obriga os hospitais a colocarem álcool em todos os ambientes em um prazo de 60 dias. A decisão foi tomada após reuniões com os maiores especialistas do pais na última sexta-feira em Brasília.

Dentro das unidades de saúde, o surto de KPC piora a difícil rotina de quem tem familiar com a saúde debilitada. Insegurança, medo e até vergonha são alguns dos sentimentos relatados ao Correio no decorrer da última semana. Para os familiares de quem morreu com a KPC, fica a dúvida: se não tivesse infectado pela bactéria, estaria vivo?

Essa é a pergunta que não sai da cabeça da dona de casa Maria das Graças da Silva, 29 anos. O pai dela, João Ribeiro, 77, morreu no último domingo, no Hospital Regional de Santa Maria. Ele ficou internado por 25 dias com quadro de pneumonia. ;Quando falaram que ele tinha essa tal bactéria, sabia que era perigosa.;, conta.

O aposentado recebeu alta e, após duas semanas em casa, voltou a sentir-se mal. ;A gente internou ele no sábado (16 de outubro) e, na madrugada de domingo, ele morreu de parada cardiorrespiratória. Fico achando que foi essa bactéria que matou meu pai. Mas no hospital ninguém fala nada;, lamenta, com a voz embargada, Maria das Graças, moradora de Santo Antônio do Descoberto (GO), a 44km de Brasília.

Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o infectologista Luiz Jacintho da Silva explica que a Klebsiella pneumoniae (KP) é uma bactéria relativamente comum em hospitais e a ocorrência de infecção de pacientes se dá por excesso de antibióticos e falhas no controle de infecção. ;Resta saber se as falhas foram sutis ou grosseiras;, afirma.

Isolamento
O isolamento dos pacientes infectados é uma das recomendações de especialistas para conter o surto. ;Uma vez instaladas, elas são difíceis de serem controladas e exterminadas. A primeira coisa a fazer é isolar os pacientes e restringir o uso de antibióticos. Em segundo lugar, é preciso fazer um controle rígido de infecção hospitalar mas isso é uma questão de disciplina;, explica Luiz Jacintho.

Apesar disso, no DF, nem todos os hospitais conseguem separar os doentes, por falta de espaço ou por superlotação. No Hospital de Base, os pacientes com KPC estão numa enfermaria no 8; andar. Há 24 pessoas infectadas e, dessas, oito desenvolveram a doença. Antes do surto, a média de pacientes contaminados por KPC era de dois a cinco por mês. ;Queremos controlar os casos e, depois, mantê-los em uma quantidade razoável. Qual é o número razoável? O menor possível;, diz o diretor do HBDF, Luiz Carlos Schimin.

Em Londrina (PR), a Comissão de Controle de Infecção Hospitalar do Hospital Universitário estuda a possibilidade de fechamento da UTI e do Pronto Socorro para evitar a proliferação de casos. Há 29 pacientes com a bactéria, sendo que oito apresentam os sintomas da infecção. A medida drástica já foi adotada em meados de julho. ;Lavamos tudo e fizemos a desinfecção repetidas vezes. Chegamos próximo ao controle, mas os casos voltaram;, relatou Claudia Carrilho, coordenadora da Comissão de Controle de Infecção.

Confira o infográficoErradicação quase impossível

Erradicar a superbactéria KPC dos hospitais é tarefa praticamente impossível, segundo especialistas. Mas é essa a meta traçada pela secretária de Saúde do Distrito Federal, a sanitarista Fabíola Nunes. Ela tem dois grandes desafios: abastecer a rede pública de medicamentos e insumos e ainda mobilizar os profissionais de saúde, pacientes e acompanhantes, transformando-os em aliados no cumprimento de normas rígidas de controle de infecção hospitalar.

Apesar de ter anunciado a compra emergencial de medicamentos e insumos essenciais ao combate da KPC, o material não havia chegado até a noite da última sexta-feira, conforme a assessoria de comunicação da Secretaria de Saúde. A reportagem percorreu os hospitais do Gama, de Santa Maria e o Hospital de Base entre terça-feira e quinta-feira. O depoimento de quem tem parente internado expõe o medo em permanecer nas unidades de saúde e a necessidade de informar mais os pacientes sobre a KPC.

A servidora pública Gabriela*, 26 anos, soube na última terça-feira que o pai, internado desde agosto por conta do rompimento de uma aneurisma, está com KPC. ;Era nosso maior medo, desde que começaram a falar nessa superbactéria. Os médicos tentam não alarmar mas já pesquisei e sei que é muito grave;, disse a jovem, formada em enfermagem. Ela denuncia que, mesmo após as sucessivas notícias sobre a KPC, presenciou enfermeiro cuidando de mais de um paciente com a mesma luva e capote. ;Ouvi comentários de que estava faltando material;, contou.

Vergonha
A dona de casa Algenora da Silva Souza, 41 anos, sentiu vergonha quando os médicos levaram o marido dela, Edmar Pereira da Trindade, 38, para uma área de isolamento no Hospital de Base. ;Chegaram e saíram empurrando a maca dizendo que ele estava com essa bactéria. Parecia que tinha a pior doença do mundo. Até o pessoal que serve comida evitava chegar perto. Colocavam o café da manhã e o almoço num balcão e você tinha que ir lá buscar;, relatou.

A auxiliar de cozinha Letícia Menezes, 21 anos, cobra do governo mais esclarecimento. ;Quem não está por dentro do noticiário não tem a menor ideia do que é essa bactéria. Não tem nenhuma informação nos hospitais, sequer um cartaz;, reclamou. O pedreiro Enes Rodrigues de Oliveira, 42, por exemplo, chegou ao Hospital de Base com uma torção do joelho. Enquanto aguardava por atendimento, descobriu, conversando com outros pacientes, que havia um surto da superbactéria. ;Como é que pega isso?;, questionou.

Sem pânico
Apesar do receio da população, Fabíola Nunes assegura que não há motivo para pânico. ;A bactéria é unicelular. Ela não voa. Os principais veículos de transmissão são as mãos e os objetos contaminados. Por que isolamos o paciente? Para facilitar o controle. Se eles ficam agrupados, podemos escalar um grupo de profissionais para cuidar apenas deles. Assim reduzimos o risco;, esclarece.

A falta de controle sobre a administração de antibióticos e falhas no controle de infecção são duas causas do surgimento de superbactérias apontadas por Ana Paula D;Alincourt Carvalho Assef, pesquisadora do laboratório de pesquisas em infecção hospitalar do Instituto Oswaldo Cruz, da Fundação Fiocruz. ;A questão do antibiótico é um problema mundial. A bactéria fica mais resistente, usa-se mais antibiótico, ela fica mais resistente ainda e, quando se espalha, fica difícil controlar e acabar com ela.;

Martírio sem fim
; Ariadne Sarkis

No momento, a crise sanitária orbita em volta do aumento de casos de infecção pela superbactéria. Mas, pacientes que padecem de outras doenças, continuam enfrentando problemas que, de tão recorrentes, passaram a fazer parte do protocolo dos dependentes do sistema de saúde pública do DF. A lista de queixas dos usuários é longa. Faltam médicos, leitos, remédios, equipamentos, investimento, agilidade.

Não é preciso um giro completo pelos hospitais do DF para constatar a situação delicada em que os pacientes se encontram. O esvaziamento humano e material das unidades públicas provoca peregrinação de pacientes e familiares em busca de atendimento mais rápido.

A história de Maria das Graças Rodrigues de Sousa, 54 anos, ilustra bem essa realidade. Há cerca de dois meses, dores, enjoos e tonturas a levaram à emergência do hospital municipal de Planaltina de Goiás, no Entorno. Um exame de raios-x mostrou líquido no pulmão. Naquele hospital nada poderia ter sido feito, por falta de médicos e aparelhos. ;;Procure um hospital que tenha recursos porque este não tem;, foi o que disseram;, contou a mulher.

Com a ajuda do ex-marido, Severino Monteiro, 66 anos, ela conseguiu ser submetida a uma drenagem nos pulmões no Hospital Regional de Santa Maria (HRSM). ;Não retiraram todo o líquido. Me deram alta há 25 dias e não me sinto melhor. É como se tivessem me mandado morrer em casa;, desabafou. Ontem, ela voltou ao hospital para ser readmitida e fazer a cirurgia de novo. Maria esperou seis horas pela internação.

Sentada a poucos metros de distância da moradora de Planaltina de Goiás, Cícera Soares Oliveira, 77 anos, estava angustiada com o palpitar acelerado do coração. Esperava desde as 9h30. ;Houve um acidente grave e eles passaram todo mundo na frente;, comentou. Cícera reclamou da falta de prioridade dos idosos no atendimento. ;Estamos abandonados. Nos prometeram saúde em casa, mas os governantes se esquecem do que falam;, criticou.

Marcar consulta na rede pública também é difícil. Cícera disse que agendou, em janeiro, uma consulta com um cardiologista, para outubro. ;Tinha até me esquecido;, observou. O HRSM informou que Maria das Graças teve que aguardar por vaga na internação e foi encaminhada ao setor no meio da tarde. Vítimas de um acidente de trânsito foram levadas ao hospital, onde sofreram paradas cardíacas e morreram, o que atrasou o atendimento aos outros pacientes.

Exame particular
A dona de casa Edilma Marques Gomes, 29 anos, mora com a família no Gama e tem todos os motivos para reclamar do hospital público da cidade. ;O primeiro atendimento é ruim, tumultuado. Não há médicos suficientes;, disparou. Quando a filha Kayfa, 7 anos, quebrou o braço, a máquina de raios-x estava quebrada. A solução foi procurar uma clínica particular, fazer o exame e depois voltar às filas dos Hospital Regional do Gama para mostrar ao médico.

;Deveriam parar de investir em estádios de futebol. Gastaram rios de dinheiro com o Bezerrão enquanto o hospital está caindo aos pedaços;, observou. O pai de Edilma está com uma cirurgia marcada há um ano para retirar um cisto nas costas. ;Sabemos que não é maligno, mas a massa cresce cada vez mais. Toda vez passam alguém na frente dele;, reclamou a mulher.

A autônoma Maria L, 52 anos, teve uma terrível experiência após a irmã Ana sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) em meados de julho. Primeiro, o Hospital Regional de Planaltina anunciou, após oito dias de internação, que as condições do prédio representavam sérias ameaças à vida da paciente. Houve a peregrinação por diversos hospitais para encontrar um tomógrafo em funcionamento para Ana ser examinada. Só o encontraram no Paranoá. Mas as piores memórias de Maria são dos dias no Hospital de Base, onde Ana morreu, em 18 de agosto.

O horror começou pela falta de higiene. ;Chão sujo, camas fétidas, com sangue. Corpos eram transportados no mesmo elevador que a comida dos pacientes;, lembra. A falta de limpeza era mais um agravante para o estado clínico da irmã de Maria, submetida a uma cirurgia na cabeça para tentar reverter o aneurisma.

Ao sair do centro cirúrgico, ela não foi levada imediatamente para a UTI. Ficou na enfermagem. Ao conseguir a vaga, com o corpo cheio de escaras, Ana precisava mudar de posição a cada duas horas. ;A enfermeira simplesmente disse que não podia me ajudar. Disse a ela que se ela não aparecesse por lá de duas em duas horas para me ajudar a coisa ia ficar feia.; Funcionou.

Mas a fragilidade da saúde de Ana a tornou presa fácil para as infecções hospitalares. ;A gente perguntava aos médicos o que ela tinha e nunca conseguia a resposta;, criticou. A resposta nunca vinha. Até o dia em que Ana não resistiu. ;Com a minha irmã morta, perguntei ao chefe da neurologia: E então, doutor? Qual é o laudo da minha irmã?;;. Foram 19 dias de agonia.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação