postado em 02/11/2010 08:00
Sobrevivente por natureza. Essa é a melhor definição para Rogélio Leite, 19 anos. Desde muito cedo, a vida lhe deu provas de que seria difícil. Aos 4 anos, ele despencou do quinto andar de um prédio. A foto da criança estampou jornais. O garoto recebeu o apelido de Menino Voador. Ganhou status de celebridade entre os vizinhos. ;Eu preciso tocar nele. Esse menino faz milagres;, diziam os mais empolgados.Pela primeira vez, Rogélio demonstrou força. Um dia depois do tombo, já estava brincando no parquinho do edifício onde vive ainda hoje com a mãe, Rogélia de Jesus, 41 anos, e dois irmãos, no Guará II. ;Eu estava distraída no telefone e ele simplesmente caiu da janela de casa. Tinha uma tela de proteção, que não resistiu ao peso;, lembrou a mãe. O destino nunca deu trégua para a família.
Rogélio cresceu saudável. Ganhou o apelido de Cizinho, porque se parece com a avó, dona Cizinha. Tornou-se modelo fotográfico na adolescência. Estava pronto para o sucesso. Mas, aos 17 anos, Rogélio teve de reaprender a viver. Depois de procurar um hospital público por conta de uma conjuntivite, ouviu de um médico a sentença cruel: ficaria cego.
O doutor não fez rodeios, não preparou os ouvidos do adolescente para o que viria. Deu o diagnóstico, como se deixar de enxergar não fosse nada grave. ;Ele só falou: ;Sua córnea está muito arranhada. Não tem jeito. Se acostuma;. E eu fiquei sem chão. Quando a gente escuta uma coisas dessas de um médico, muda a nossa vida, porque a gente confia nele;, afirmou Rogélio.
O rapaz tem ceratocone, uma doença ocular que pode ser genética. Nela, a porção central da córnea vai afinando aos poucos. A visão fica cada vez mais turva e a forma de ver o mundo, afetada. O problema tem vários níveis. O de Rogélio atingiu 52 pontos em uma escala de 60. Há nódulos nos olhos, para complicar a situação. Nos casos mais graves, somente um transplante pode resolver o problema. ;O primeiro médico disse que nem isso poderia me ajudar. Mas ele não fez nem sequer um exame;, afirmou.
Desenganado, durante dois anos, Rogélio conviveu com a doença. Perdeu mais de 50% da visão do olho direito. Passou a enfrentar uma forte dor de cabeça. Os olhos ficavam vermelhos. Ir à escola ficou cada vez mais difícil. Sentar em frente ao computador, nem pensar. A mãe, atendente de telemarketing e estudante de artes cênicas, não podia pagar pelo tratamento que a rede pública não ofereceu. Há dois meses, uma tia resolveu patrocinar a ida do menino a um oftalmologista particular.
Renascimento
Ali, em um consultório do Sesc de Taguatinga Norte, Rogélio foi recebido de maneira bem diferente da primeira vez. Encontrou esperança. O novo médico pediu exames. Olhou de perto nos olhos do menino. ;Foi totalmente diferente. Ele me levou a um aparelho que simulava o grau da lente e eu simplesmente enxerguei.; Houve até comemoração na casa do adolescente.
Mas o otimismo precisou ser contido. O doutor afirmou que, apesar da novidade, seria necessária uma lente rígida, caríssima. Ela poderia não ser o suficiente. Era preciso fazer tratamento com laser. Cada sessão custa, em média, R$ 1 mil. Rogélia, que cria os filhos sozinha, se viu novamente sem saída. Os parentes entraram em ação outra vez. Juntaram dinheiro e compraram a lente, que ainda não chegou. ;A gente precisa ter esperança, para conseguir seguir em frente. Mas nós sabemos que isso é só um paliativo, algo que pode retardar a doença, mas não curar;, afirmou a mãe, realista.
As sessões de laser vão ter de esperar, por questões financeiras. Enquanto isso, Rogélio tenta enfrentar a vida sem muita aflição. Para isso, dedica-se a escrever poemas. ;Eu pensei muito sobre as pessoas que não enxergam. Deve ser uma das piores coisas da vida. O mundo não está pronto para receber quem tem dificuldades;, avalia.
Inspiração
Rogélia é mãe de três meninos. Rogélio é o caçula. Ainda há Spencer, 23 anos, e Lehy, 21. O pai dos meninos envolveu-se com drogas. Era um ator em ascensão. Chegou a trabalhar na Rede Globo e ao lado da consagrada atriz Bibi Ferreira. Mas se entregou ao vício. Com isso, levou a violência para dentro de casa. Rogélia pediu a separação.
Uma experiência assim deixa sequelas. Spencer desenvolveu esquizofrenia, aos 12 anos. Começou a viver em um mundo muito particular. Falava sozinho, tinha visões. Mais uma vez, a falta de dinheiro prejudicou a família. A mãe, entretanto, faz da doença dos filhos um aprendizado: ;A gente vive, anda, dá risada, chora e poucas vezes se coloca no lugar do outro. Essas coisas nos mostram que precisamos prestar mais atenção nos problemas do mundo, porque eles podem nos atingir também;.
Lehy, por sua vez, assumiu o papel de pai dos irmãos. É skatista e coleciona medalhas e troféus. Com o dinheiro das competições, ajuda nos tratamentos. Rogélia ensinou os filhos a perseguirem seus sonhos. Assim como ela faz, ao cursar faculdade de artes cênicas, aos 41 anos. Certo dia, Lehy viajou para um campeonato de skate com R$ 50 no bolso. Era o dinheiro para comprar gás de cozinha. ;A regra aqui em casa é acreditar em si mesmo acima de qualquer coisa. O gás ficou para depois;, decretou Rogélia. Lehy voltou com uma moto, o prêmio de primeiro lugar.
Os altos e baixos da família inspiraram um livro. O escritor brasiliense J. Simões, amigo de Rogélia, deve lançar em breve a publicação Manobra radical. Conta, em um misto de realidade e ficção, como a mãe e seus meninos especiais superaram uma vida de desafios diários. As ilustrações serão da própria Rogélia, que também é artista plástica autodidata. ;É emocionante poder deixar essa história para as pessoas;, emociona-se ela.
Arte de ajudar
Rogélia faz parte de um grupo teatral, o Trincheira Cia de Teatro. Quando souberam do drama familiar, os colegas se apressaram em contribuir. Planejam organizar eventos para arrecadar dinheiro para o tratamento de Rogélio e também de Spencer. Vão montar peças, exposições de artes, tudo voltado a quem foi privado da visão.
Falta apenas definir as datas e os colaboradores. ;Foi tudo muito rápido, a notícia, a evolução da doença. Nossa vida mudou muito, em menos de dois meses;, observou Rogélia. Ela ficou feliz, emocionou-se. Rogélio teve uma ideia ainda melhor. ;Tem muita gente por aí que está pior do que eu. Podemos dividir a renda dos eventos com entidades que cuidam desses deficientes visuais;, sugeriu. E assim a solidariedade se renova.