Guilherme Goulart
postado em 05/11/2010 08:12
A piauiense Maria do Amparo Teixeira está em busca de ressurreição. Assim mesmo, no sentido literal da palavra. A moradora do Paranoá tem endereço próprio, telefone, registro no INSS e anda para lá e para cá como fazem todos aqueles que estão vivinhos da silva. Mas nada disso parece ser suficiente para garantir a vida ; pelo menos no papel ; da mulher de 52 anos. Essa mãe de três filhos aparece como morta em parte dos arquivos públicos candangos. E há mais de um mês ela luta para provar o contrário. ;Essa é hoje a história da minha vida. É a ressurreição de Maria do Amparo;, diz, com segurança.A postura firme, no entanto, é momento raro no dia a dia da doméstica aposentada. O drama começou em 23 de março deste ano, quando ela se submeteu a uma cirurgia na vesícula no Hospital Regional da Asa Norte (Hran). A operação transcorreu dentro da normalidade. Maria ficou três dias internada e, às 10h33 de 26 de março, acabou liberada pela equipe médica. O que ela não imaginava era o que seria escrito no prontuário. Segundo o documento, assinado por uma médica da rede pública de saúde, a paciente recebeu ;alta com óbito;.
Por mais estranha que a expressão pareça, revelou-se suficiente para transformar a vida de Maria do Amparo. Essas poucas palavras indicaram à burocracia pública que a piauiense radicada no Distrito Federal desde 1991 estava morta. Assim, a aposentada se viu impedida de fazer consultas e exames e conseguir receitas para medicamentos essenciais ao bem-estar. ;Já fui três vezes ao Hospital de Base (do Distrito Federal, HBDF) e não consigo ser atendida porque dizem que estou morta. Em nenhuma das vezes, os funcionários encontraram o meu nome no sistema;, lamentou.
A aposentada nem mesmo conseguiu fazer a revisão da cirurgia de vesícula, marcada para 16 de junho. A consulta caiu em um dia de jogo do Brasil na Copa do Mundo da África do Sul. Soube no local que não haveria expediente. Foi mais uma vez à unidade de saúde e nada. Maria do Amparo procurou ajuda. Encontrou na Subsecretaria de Proteção às Vítimas de Violência (Pró-Vítima), da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania (Sejus). Ao ir em setembro ao HBDF, dessa vez acompanhada por uma servidora da Pró-Vítima, descobriu a informação do óbito no próprio prontuário.
A mulher, então, entrou em desespero. Isso porque a vesícula não é o único problema de saúde dela. Tem cistos no estômago, nos rins e no fígado, além de sofrer de hérnia de disco. Cada doença exige um tratamento, mas nem na fila de espera Maria do Amparo figura porque, para o sistema de saúde brasiliense, não vive mais. ;Para mim, parecia uma brincadeira. Quando a ficha caiu, fiquei perturbada. Eu levo a minha vida agora estressada. Às vezes, nem me reconheço mais no espelho. Às vezes, não sei mais quem eu sou. Penso se estou viva mesmo;, conta (leia depoimento).
Choro
Maria do Amparo tem dificuldades em tocar no assunto. A falha no sistema público acabou com a autoestima dela. Chora com facilidade. Enche os olhos de lágrimas sempre que é confrontada com o problema. Recebe hoje auxílio psicológico dos profissionais da Pró-Vítima. Alguns deles, como Maria Derminda da Silva Pereira, diretora executiva do Centro de Apoio Social do órgão assistencial, viraram amigos. ;Atribuo tudo isso a um erro do sistema. Sabemos que a demanda é muito grande e a oferta de funcionários, pequena;, avalia Maria Derminda.
Em 18 de outubro, a diretora encaminhou um ofício à direção do Hran (veja fac-símile). Também abriu um relatório de acompanhamento do caso. Os documentos detalham a situação de Maria do Amparo e cobram uma posição do Hran. ;A cidadã necessita de cuidados médicos e, na situação em que se encontra na saúde pública, isso se torna inviável;, escreveu Maria Derminda. Por iniciativa da Pró-Vítima, a história também virou caso de polícia. Há ocorrência registrada na 6; Delegacia, no Paranoá, desde 30 de setembro.
Enquanto aguarda uma solução, Maria do Amparo se segura na fé. Frequenta a igreja, segue uma rotina de orações e sempre que encontra um amigo ou conhecido na rua pede que reze por ela. ;Deus é o meu escudo.; A experiência, porém, lhe rendeu muitas decepções. Fica triste devido ao descaso das autoridades públicas com a vida alheia. Sobre o futuro, deseja apenas que tudo volte ao normal. ;Quero retomar a minha vida do jeito que ela estava. Quero fazer as minhas cirurgias e recuperar a saúde;, pede a aposentada, piauiense de Campo Maior.
Em branco
O Correio entrou ontem em contato com a assessoria de imprensa da Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Às 17h de ontem, a reportagem foi orientada a conversar com a assessoria do Hospital de Base do DF. A primeira informação deu conta de que Maria do Amparo deveria ir ao arquivo médico da instituição e apresentar o cartão de saúde para resolver o problema. A segunda, repassada mais tarde também por telefone, revelou que o prontuário da paciente no Hospital de Base estava em branco. Mas a funcionária da Pró-Vítima que acompanhou a mulher a uma das idas ao HBDF afirmou ter visto o documento com a data da morte. E Maria Derminda garantiu que, em conversa privada, equívocos foram admitidos por um servidor do Hran ; onde toda a confusão começou.
Assessoria
O programa existe desde março de 2009. Tem como finalidade dar visibilidade aos direitos dos cidadãos atingidos direta ou indiretamente por crimes violentos, assegurando atendimentos multidisciplinares nas áreas psicossocial e jurídica.