postado em 06/11/2010 08:00
Regina Célia Monteiro, 68 anos, sente falta de Brasília, mesmo morando na cidade. Tem saudade do lugar que conheceu aos 18, quando chegou acompanhada somente da avó, Maria Monteiro, em fevereiro de 1960. Pensa com nostalgia nos tempos em que andava pelas ruas sem medo. Nadava em córregos, como se estivesse na roça onde nasceu, em Minas Gerais. Regina era uma adolescente com jeito de criança. Começou a trabalhar assim que chegou à nova capital. Era engraxate ; segundo conta, a única menina a exercer a atividade entre os candangos.Mirrada, Regina saía cedo de casa, um barraco no Morro do Urubu, apelido dado a um dos acampamentos próximos ao Núcleo Bandeirante. Nos pés, calçava chinelos feitos de pneus. Carregava nas costas a caixinha com graxa e esponjas. Trabalhava ao lado de Pimenta, um dos primeiros amigos que fez na cidade. ;Foi ele quem me ensinou a engraxar. Eu sempre tive o dom para o trabalho. Sempre gostei de fazer dinheiro e ficar ocupada. Desde muito cedo.;
A avó, que era cozinheira em canteiro de obra, foi quem comprou os equipamentos para a neta. O serviço custava apenas um centavo, à época. A menina guardava dinheiro em uma ;capanguinha;, como ela mesma chama. ;Mas dava para comprar um monte de coisas. Eu passava no mercadinho de madeira da Cidade Livre e comprava carne salgada. Como não tinha geladeira, a carne ficava pendurada na corda. Dava para comprar até um bocado de pó de café;, lembrou. Em alguns meses, sobrava até para um corte de seda, do qual a avó fazia vestido para a neta. Eram, definitivamente, outros tempos.
Entre uma botina e outra, Regina tomava banho de córrego, na área do Parque Saburo Onoyama. Corria solta, ao lado de Pimenta e outros colegas. ;De mulher, só tinha eu, e eles me respeitavam. Como era bom poder andar por aí sem medo de ladrão, de estupro;, lembra.
Encontro
Há entre essas lembranças uma que brilha de um jeito especial. A engraxate estava no meio de um canteiro de obras da Candangolândia quando viu o então presidente da República, Juscelino Kubitschek de Oliveira. O homem imponente estava entre os peões, como se fizesse parte da categoria. Regina, muito livre de acanhamento, aproximou-se: ;Quer engraxar?;.
O presidente riu. ;Menina, onde já se viu engraxar botina?;, respondeu. ;É botina mesmo que a gente engraxa aqui. Ninguém tem sapato;, explicou, insistente. JK cedeu. Sentou-se em um banquinho de madeira e deixou Regina esfregar a graxa preta em suas botinas.
;Ninguém se importava com a poeira. Todos queriam andar com a botina no jeito;, relatou. Naquela época, a menina não entendia bem a importância do cliente ilustre. Muito menos tinha a noção de que JK seria lembrado para sempre como o homem que ergueu, em meio ao nada, Brasília.
Engraxou as botas de JK com o mesmo cuidado que dedicava às dos trabalhadores. ;Eu sempre caprichei. Acho que ele ficou satisfeito, mas nem disse nada.; Regina não media esforços para ganhar seus centavos. Também trabalhava em Taguatinga. Era no Bar Estrela, o ponto de referência mais famoso da cidade à época, que ela engordava o orçamento.
Ali, ganhava almoço, vez ou outra. Pimenta, o colega de muitas andanças e banhos de rio, ficava enciumado. ;Eu ganhava a simpatia de todo mundo. Era esperta. Me achavam esforçada. Lá no bar me serviam até almoço. Isso deixava o Pimenta doido. Eu dividia com ele;, conta, entre sorrisos. Era um tempo de diversão fácil em Brasília. O povo saía às ruas para ver os ônibus, uma grande novidade por aqui. ;Eles eram chamados de Romeu e Julieta e de Papa-fila (ônibus com reboque). Era uma festa. Qualquer coisa divertia.;
Nem todas as lembranças, porém, são boas. ;A primeira vez que vi uma pessoa morta foi em Brasília. Os candangos diziam que um guarda da GEB (Guarda Especial de Brasília) tinha matado uma mulher, a Marieta, na linha do trem, no mês seguinte da inauguração de Brasília.; Regina nunca soube de fato o que ocorreu.
Trajetória
Quando os moradores do Morro do Urubu foram transferidos da área, a avó de Regina ganhou um lote em Ceilândia, na Quadra 19. ;Moravam umas nove famílias em barracos, tudo no mesmo lote. Não tinha água, era só no carro-pipa. Dava briga na fila. Mas era bom demais. Tenho saudade dessa época. Hoje é tudo mais fácil e as pessoas reclamam demais. Falta coragem de trabalhar;, acredita.
Três anos depois de chegar a Brasília, Regina deixou de engraxar sapatos. Passou a varrer as ruas do Plano Piloto. Depois, trabalhou como cozinheira em restaurantes da mesma região. Até chegar a ser contratada pela Novacap, como servente, cargo do qual aposentou-se por tempo de contribuição. Mesmo aposentada, Regina ainda prestou serviço na Câmara dos Deputados, em um gabinete. Ela, que viu o prédio do Congresso Nacional inacabado, teve o prazer de frequentá-lo depois de pronto.
Hoje, Regina mora em Samambaia. Construiu uma casa simples, de chão vermelho encerado, em um lote doado pelo governo, depois de fazer cadastro no antigo Idhab (órgão que distribuía lotes). Sente-se filha de Brasília. ;Tentei mudar daqui uma vez. Fiquei um mês fora e voltei correndo, arrependida.; Regina acredita no valor das memórias. Apega-se a cada uma delas, para compensar a falta de fotografias. ;Naquele tempo, ninguém tirava foto não. Não era como hoje. Tinha um lambe-lambe e só.; Regina não se importa. Sabe que as imagens estão guardadas no melhor álbum de todos: a memória.