O cobiçado negócio do lixo no Distrito Federal acumula mais de uma década de denúncias de falcatruas, desvio de dinheiro público e enriquecimento ilícito. Os escândalos já atingiram governadores, assessores, empresários e até promotores de Justiça. Mas nada resultou na transparência do serviço essencial ao conforto e à saúde da população da capital brasileira. A licitação realizada há três anos para moralizar o pagamento do GDF às empresas terceirizadas está contaminada por uma série de irregularidades que resultaram em superfaturamento, segundo juízes e ministros.
Três empresas travam uma guerra judicial para ver quem fica com a coleta e o tratamento do lixo no DF, desde a licitação de 2007. A firma que está fora e briga pela exclusividade responde a acusações de fraudes em contratos com prefeituras. Ela e as duas empresas detentoras do contrato com o GDF enfrentam processos em tribunais estaduais e federais. O trio também é alvo da Receita Federal, por sonegação e outros crimes. O diretor de uma delas chegou a ser preso pela Polícia Federal.
O lixo do DF está nas mãos da Qualix Serviços Ambientais e da Valor Ambiental, apesar de uma terceira empresa, a Delta Construções, ter apresentado a menor proposta na concorrência pública de 2007. Ela acabou desclassificada por decisão da Comissão de Licitação do Serviço de Limpeza Urbana (SLU). O órgão só abriu a concorrência após denúncias por conta de suspeitos contratos emergenciais e outra licitação supostamente direcionada, que beneficiaram a Qualix.
O trio que disputa o controle do lixo na capital do país tem um histórico de negócios suspeitos com a administração pública. A Qualix detém acordos com várias prefeituras. Em todas, coleciona problemas com a Justiça. A Delta é uma das que mais faturam com obras do governo federal, além de manter parcerias com municípios e estados. Já a Valor Ambiental está citada no inquérito da PF que pôs fim ao governo de José Roberto Arruda.
Municípios onde a Qualix mantém contrato de coleta de lixo são alvo de uma ação judicial de fornecedores. Feira de Santana (BA), por exemplo, foi surpreendida em 20 de agosto por uma ordem da Justiça que mandava recolher os caminhões usados pela Qualix na coleta do lixo. Os veículos serviriam para a empresa pagar uma dívida com um banco paulista. O prefeito Tarcízio Pimenta (DEM) interveio e fez a direção da firma garantir a substituição dos caminhões e a continuidade do serviço. A situação da Qualix se agrava em outras partes do Brasil.
Em Porto Alegre (RS), onde atua desde novembro de 2007, a empresa também está na mira da Justiça. O MP gaúcho e o Ministério Público de Contas estudam a suspensão do contrato da Qualix com o Departamento de Limpeza Urbana da Prefeitura. Já o MP do Piauí abriu investigação no mês passado para apurar irregularidades na licitação vencida pela Qualix em 2009 para cuidar do lixo de Teresina. Para o promotor do caso, há indícios do direcionamento da concorrência, que rende R$ 9,8 milhões mensais à Qualix.
A Prefeitura de Cuiabá (MT) rompeu o contrato com a Qualix em 16 de julho e o repassou à Delta, por seis meses, pagando R$ 1,1 milhão mensais, cerca de R$ 500 mil a menos. O motivo da mudança deve-se principalmente à baixa qualidade do serviço prestado pela Qualix, que, por conta disso, acumulava R$ 4 milhões em multas com a prefeitura. Nesse caso, a Qualix e a Delta não tiveram de enfrentar licitação. Apenas assinaram contratos emergenciais, em vigor desde 2008.
Diretor preso
Um mês após conseguir o contrato em Mato Grosso, a Delta teve um dos seus diretores, Aluísio Alves de Souza, preso pela PF, na Operação Mão Dupla. Ele era investigado por envolvimento em esquema fraudulento de licitações, superfaturamento, desvio de verba pública e pagamentos indevidos, em obras de infraestrutura rodoviária realizadas pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit). De acordo com a PF, a Delta teria lesado os cofres públicos em R$ 5 milhões.
A Delta, além de lidar com o lixo, é uma das empresas que mais recebem dinheiro da União em contratos de obras civis. O Sistema de Administração Financeira (Siafi) mostra que, em sete anos, ela levou R$ 2 bilhões do governo federal. O volume de pagamentos aumentou após 2004, quando a Delta foi a sétima maior doadora da campanha de Marta Suplicy (PT) à Prefeitura de São Paulo (R$ 415 mil ao comitê partidário).
Dois anos depois, a Delta ganhou a principal fatia dos contratos emergenciais na Operação Tapa-Buraco feita pelo Dnit para recuperar o asfalto de rodovias federais. Mas as dores de cabeça da Delta crescem na mesma proporção. A Controladoria-Geral da União (CGU) apontou irregularidades em 14 construções da firma pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em convênios que somam R$ 200 milhões com o Dnit. Na lista da CGU, estão pagamentos por trabalhos não executados, alteração contratual com acréscimos financeiros não previstos em lei e serviços duplicados no mesmo trecho.
Os problemas se espalham pelo país. Em Minas Gerais, a Delta foi investigada por usar documentos falsos para participar da licitação da via que liga Belo Horizonte ao Aeroporto de Confins. No Ceará, houve suspeita de direcionamento de licitação. No Paraná, virou alvo de operação que descobriu um acerto entre as construtoras para fraudar licitações.
Caixa de Pandora
Concorrente da Delta, a Valor Ambiental é pivô da maior crise da história do Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT). De investigadores, promotores passaram a investigados pela Polícia Federal no desmembramento da Operação Caixa de Pandora. Em 14 de julho deste ano, policiais federais cumpriram mandados de busca e apreensão autorizados pelo Tribunal Regional Federal, onde corre em segredo de justiça um inquérito que investiga as empresas que prestam serviços de limpeza urbana ao GDF.
As firmas são investigadas pela Procuradoria Regional da República por suposta ligação com o suposto esquema de pagamento de propinas do governo Arruda. Em depoimento no fim de 2009, o ex-secretário de Relações Institucionais do Executivo local Durval Barbosa denunciou que o então procurador-geral de Justiça do DF, Leonardo Bandarra, e a promotora Deborah Guerner teriam recebido dinheiro de empresas para não impedir a prorrogação dos contratos de recolhimento de resíduos.
Uma das empresas investigadas é a construtora Caenge, que, com as empresas Rodoviário União e Antúrio Administração e Participações são sócias da Valor Ambiental, cujo capital social é de R$ 8,1 milhões e o faturamento anual, de R$ 45 milhões. Entre 2007 e 2009, a Valor e a Caenge receberam R$ 74 milhões do GDF em contratos firmados sem licitação pública. A investigação sobre os contratos do lixo no DF continua em andamento e sob segredo de Justiça.
Entenda o caso
Lotes são cobiçados
Na licitação realizada em maio de 2007, o governo dividiu as cidades do Distrito Federal em três grandes lotes para a coleta de lixo. A Delta Construções apresentou as menores propostas para os lotes 1 e 3. No primeiro caso, a empresa pediu R$ 6.148.626,23 por mês para prestar o serviço e, em relação ao lote 3, o valor chegou a R$ 2.909.531,17. Mas a Comissão de Licitação do Serviço de Limpeza Urbana argumentou que a Delta não apresentou toda a documentação exigida e desclassificou a firma. Dessa forma, a Qualix, segunda colocada, ficou com o lote 1 por R$ 6.386.143,81 e a Valor Ambiental faturou o lote 3, com a previsão de receber mensalmente R$ 3.108.053,87. O contrato tem validade de cinco anos.
A Delta recorreu à Justiça logo depois da desclassificação para tentar reverter o resultado. Conseguiu uma liminar, que foi posteriormente derrubada; recorreu novamente e, em 13 de setembro último, a 1; Turma Cível do Tribunal de Justiça do DF e Territórios (TJDFT) decidiu que a Delta poderia assumir o serviço de limpeza urbana no lugar da Qualix e da Valor Ambiental.
No mês passado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a decisão do TJDFT. Porém, alegando prejuízos à população, a presidente do Tribunal de Contas do DF, Anilcéia Machado, determinou a continuidade da prestação do serviço pela Qualix e a Valor. Elas e a Delta tiveram um prazo para apresentar suas alegações, que serão analisadas pelos conselheiros do TCDF. Eles decidirão, enfim, quem ficará com o contrato.
A defesa em notas
O Correio tentou, por dois dias, entrevistar diretores das empresas envolvidas na disputa pelo lixo no DF, mas elas se limitaram a enviar notas oficiais. Tanto a Qualix quanto a Delta negaram as acusações de fraudes.
A Qualix, que tem mais de 7 mil funcionários e 500 veículos e equipamentos operacionais, opera em Porto Alegre (RS), São Paulo (SP), Diadema (SP), Rio Claro (SP), Hortolândia (SP), Várzea Grande (MT), Feira de Santana (BA) e Teresina (PI), além de Brasília.
A Qualix diz ter ;vencido; a concorrência no DF ;por ter apresentado toda a documentação e atestados de competência para o desenvolvimento do trabalho;. E destaca: ;O preço final apresentado pela Qualix na licitação foi o mais baixo em relação às demais empresas, uma vez que ela ofereceu um desconto de 4% sobre o valor originalmente proposto;.
Sobre dívidas com fornecedores, a nota informa que ;a Qualix passou por um extenso processo de restruturação, desde a aquisição por seus novos controladores. (;) Este processo foi iniciado junto a 100% de seus parceiros e está praticamente completo, não mais afetando suas operações ;.
Já a Delta Construção tem cerca de 20 mil empregados, dos quais 3 mil trabalham na limpeza urbana em 14 cidades. A empresa, segundo a sua assessoria, ;está preparada para assumir imediatamente a coleta de lixo do DF assim que for demandada pelo governo;. A nota destaca que ;o serviço será feito 24 horas por dia com uma ampla frota de equipamentos e equipe treinada e qualificada;.
A respeito da Operação Mão Dupla, que resultou na prisão de um dos seus diretores, a Delta alega que ;nada ficou comprovado e aguarda com serenidade a conclusão dos trabalhos da PF;. A reportagem não encontrou representante da Valor Ambiental. (RA)