postado em 15/11/2010 08:33
Da porta da casa simples de madeira, na Quadra 2 do Varjão, Helena Pereira Osório, 66 anos, gosta de espiar a vida, enquanto toca violão. Distribui sorrisos a quem quer que passe. Mas nem sempre foi assim. Há pouco tempo, ela esteve perto da morte. Sozinha, passava dias e noites na cama. Teve hanseníase, problemas de coração, rins, fígado e pressão alta. A tristeza, porém, doía mais.O barraco se transformou em depósito de entulho. Ratos e baratas passeavam por ali. O abandono veio com a morte do marido, Ermínio Gomes de Oliveira, catador de material reciclável, há cinco meses. Helena perdeu as forças. Ela, que nunca quis ter filhos, viu-se completamente só. ;Não queria colocar ninguém no mundo para sofrer o que eu sofri;, disse a mulher, que um dia foi menina sem carinho, nas roças do Piauí.
Quando as doenças tomaram conta, Helena entregou-se à própria sorte. Demorou até que alguém tivesse notícias dela. Preocupada, a amiga e vizinha Valquíria de Lima, 52 anos, decidiu visitá-la. Quando chegou ao barraco, encontrou o cenário de sujeira e abandono. Fez Helena levantar-se da cama e procurar um médico.
Depois disso, Valquíria tornou-se cuidadora voluntária de Helena. Encontra espaço, todos os dias, entre as obrigações com a família e as tarefas domésticas, para dar os remédios nos horários certos à amiga e passear com ela. É Valquíria quem leva Helena às consultas médicas e prepara almoço, café e jantar. Além disso, cuida da limpeza da casa e faz a feira do mês. Recebe de volta carinho e gratidão. ;A recompensa é Deus quem dá. Sinto um bem muito grande em ajudar;, disse Valquíria.
Mobilização
No mês passado, Valquíria organizou um mutirão de limpeza na casa de Helena. Convocou a família inteira para ajudar. Bateu à porta da Administração Regional do Varjão e pediu caminhões emprestados para carregar o lixo. ;Tiramos três carros cheios de entulho daqui. Não sobrou nada. Nem os móveis, que eram velhos demais, acumulavam poeira e pioravam as doenças dela;, relatou Valquíria.
O barraco pequeno ganhou aconchego. Tem cheiro de lar. As panelas brilham. O chão reluz. A cama fica sempre arrumada. Um rádio velho repousa sobre o forro de crochê. Há até uma boneca, bem grande, por sinal, encostada na parede. Ela recebeu o nome de Maria Bonita. ;Acorda, Maria Bonita;;, Helena cantarola.
É hora de superar as lembranças da infância castigada pela violência em
família. Aos 66 anos, ela brinca de boneca. Penteia os cabelos e arruma as roupas do brinquedo. ;Filho meu, eu não tive, não. Mas dos outros, eu cuidei muito;, relembrou a idosa, que trabalhou durante 22 anos como empregada doméstica no Plano Piloto.
Uma pequena imagem de Nossa Senhora Aparecida, para a qual Helena reza todos os dias, assiste a tudo. ;Eu queria uma santinha maior;, confessa. Helena também precisa de um fogão e de uma geladeira. Os dela estão nos últimos suspiros.
Revolução
Helena parece outra pessoa, diferente daquela mulher que não gostava mais da vida. Está pronta para superar as doenças. Ganhou o apelido de ;Baixinha alegre; no hospital onde se trata ; ela mede, no máximo, 1,50m. Voltou a dedilhar canções no violão envelhecido, enfeitado com adesivos da Virgem Maria. Canta com voz doce cantigas de outros tempos. ;Não sou mais uma menina daquelas que brincam de pique. Mas alegria, tenho demais. Onde eu vou eu levo a boa simpatia;, afirmou. Até Lessie, a cadela de estimação, melhorou a aparência. ;Ela só falta falar agora, de tão inteligente.;
Helena chama Valquíria, carinhosamente, de fiscal. ;Ela tem o apelido de delegada também. Quando vem chegando, eu já corro para ver se tudo tá em ordem;, brincou. ;A Valquíria é minha amiga, irmã, filha.; As roupas não ficam uma semana sem lavar. Helena recuperou a vaidade. Veste calças pretas com barra de renda, combinadas com uma blusa de bordados delicados e colete bege. Valquíria olha para a amiga e sorri. ;Só de pensar que ela andava tão triste e calada;;
Iniciativa
Valquíria, casada, paraibana, mãe de 14 filhos ; a caçula tem 6 anos ;, avó de 12 netos e com dois bisnetos, é caridosa por natureza. Cuida de tudo e de todos. Sem se esquecer dela mesma. O rosto moreno está sempre maquiado, sem rugas. Os cabelos grisalhos parecem bem tratados. Ganhou fama de ;delegada; por tomar a frente nas reivindicações por melhorias na quadra. ;Fico pensando na quantidade de idosos que estão na mesma situação que dona Helena, jogados à própria sorte, e ninguém ajuda.;
Em sua prática diária de vida, a cuidadora mostra que tem lições para dar: ;O povo fala que em comunidade carente ninguém se ajuda, mas é mentira. A gente é pobre, mas pobreza não é defeito. Aqui tem gente honesta e trabalhadora. Eu faria isso por qualquer uma dessas pessoas. Tudo que a gente planta nasce de novo;. Quando veio para Brasília, nos anos 80, Helena sonhava ter uma casa para morar. Encontrou a família que nunca teve. Agora, quer viver muito mais. Só para sentir felicidade.
Para ajudar
Helena precisa de fogão, geladeira e até de areia e cimento para uma pequena obra no barraco. Contatos com Helena: 9262-4838 e 3468-6938.