Cidades

Gêmeas de 15 anos contam como é ser negra e morar na capital do país

postado em 21/11/2010 09:56
Minha mãe é professora, ela mora em Brasília há mais de 20 anos. Não sei muito do meu pai, ele é um pai ausente, mas para a gente isso é uma coisa insignificante. Na minha infância, estudei na Tia Elza, uma escola particular aqui perto. Depois, estudei em duas escolas públicas no Guará. Continuamos em escola pública até hoje. A gente era muito odiada pelas meninas porque era muito metida, a gente se achava demais. Sempre me achei bonita, mas nunca aceitei a minha cor. Eu sempre falava: ;Ah, eu deveria ser branca;. Porque na escola a gente era chamada de Chica da Silva, de um monte de apelidos.

Antes de ser modelo, só usávamos calça jeans até o pé, porque a gente morria de vergonha de nossas perninhas fininhas. Depois que a gente virou modelo, quase não usa mais calça, usa muito short, vestido. Eu me achava bonita, mas não gostava da cor da pele, do cabelo e da altura, me achava muito alta. Na escola, a gente era as mais altas. Hoje me acho a mulher mais bonita do mundo. Depois, se a gente não se achar, quem é que vai achar? Na escola, quando alguém chamava a gente de Chica da Silva, macaca, Pepê e Neném [dupla de cantoras gêmeas cariocas], a gente reagia, gritava, ia à diretoria. A gente não deixava barato, não levava desaforo pra casa. Revidava de todo jeito, só que era pior.

Minha mãe botou na minha cabeça que era pra eu ser médica. E falou o que cada filha dela tinha que ser. E a gente ficou com isso na cabeça, só que depois de uma certa idade, a gente fica ciente do que a gente quer. E quero fazer direito, porque sei que carreira de modelo não é para sempre. As cotas são necessárias, porque vamos ser bem sinceros; se não tiver; os produtores vivem nos falando: ;Pra uma negra pegar um trabalho, ela precisa ser muito boa. Tem que estar perfeita, muito melhor do que uma branca;. Meus amigos todos falam que as cotas para a universidade são desnecessárias, porque é uma forma de racismo. Pode até ser pra eles, mas só quem é negro sabe o que sofre;

Karina

Não gostava dos apelidos que nos davam e parecia que quanto mais a gente reclamava, mais eles falavam. A gente levava essas brincadeiras muito a sério. Depois que a gente foi crescendo, foi levando mais na brincadeira. Mas nunca dei ousadia pra ninguém me apelidar disso ou daquilo, porque acho isso uma falta de respeito. Nunca gostei, nunca deixei passar sem falar nada. Eu não gostava nem da minha pele nem do meu cabelo cacheadinho. A gente sempre fez escova. A gente começou a fazer alisamento com 5 anos. O bom de a gente começar a ser modelo é que aumentou nossa autoestima, passamos a nos aceitar mais. Até há uns três, quatro anos, a gente não se aceitava muito. Depois, começou a gostar do que tinha.

Sempre digo pra todo mundo que a Karen é a única pessoa no mundo que, se alguém estiver brigando com ela, eu entro no meio pra defendê-la. Não faço isso por mais ninguém, porque eu não gosto de briga. Mas, pela Karen, vou até o fim. Eu já quis ser arquiteta, advogada, hoje eu também quero fazer direito, mas com o intuito de ser juíza. Eu sempre, desde criancinha, gostava de ver seriado de polícia, e sempre tive vontade de acabar com a injustiça, prender os bandidos e tudo mais.

Quando a gente estava com 10 anos, as pessoas falavam: ;Ah, vocês podem ser modelos;. Por causa disso, começamos a pensar no assunto. Em 2008, participamos de um concurso fajuto. Ganhamos o primeiro lugar, mas não recebemos o que foi prometido. Minha mãe ficou com o pé atrás. A gente recebia recado no Orkut para fazer entrevista em algumas agências, mas a minha mãe não deixava. Até que encontramos uma que achamos que era séria. ;Mãe, está tudo certinho. Vamos ver no que vai dar;. Foi no começo das férias do ano passado.

O Brasil é um país diversificado. Tem que dar valor a todas as etnias, a todas as raças e não só à raça negra. Já sofri preconceito e tudo mais. E acho que tem que mudar a cabeça dos jovens de hoje em dia para no futuro não acontecer mais isso. Não é por que a pessoa é negra, é japonesa, é índia, que ela é menos importante que uma pessoa branca.

Para ler
Um defeito de cor, Ana Maria Gonçalves, Editora Record, 2006 ; Em 952 páginas, a personagem principal, Kehinde, conta a sua história desde que foi retirada de seu reino africano e transportada para o Brasil num navio negreiro. Como pano de fundo, o Brasil escravocrata do século 19. A obra ganhou o prêmio Casa de las Américas 2007.

PALAVRA DE MÃE

Ana Ruth Nogueira Ferreira

"Tenho 42 anos, nasci em São Luís do Maranhão, estou aqui há 24 anos, sou professora da rede pública. Sou parda, meu cabelo é marrom, e digo que sou afrodescendente. Digo aos meus alunos que todos nós viemos de uma senzala e que eu queria muito ver a senzala de onde eu vim. Eu tento resgatar neles o valor do nosso sangue, os nossos antepassados. Sou parda, tenho sangue branco, sangue negro, sangue índio, sou fruto da miscigenação brasileira. O pai das meninas é negro. Cresci ouvindo minha mãe falar: ;Procura clarear a sua cor;. Isso pesou em mim. Durante muito tempo, só namorei homens brancos. Até que conheci o pai das meninas. Um negro. Engravidei durante o namoro. Fui pra São Luís e contei para os meus pais. Aí a minha mãe falou assim: ;Por que não foi de fulano?;, que era um branco. ;As meninas vão sofrer preconceito, vão sofrer isso, vão sofrer aquilo;. Entendi que ela estava querendo proteger as netas, do jeito dela. Com cinco meses de gravidez, terminei o namoro, e meus pais me ajudaram muito. Desde o início, eles amam as netas de paixão. Eles aprenderam que aquela mistura foi uma combinação perfeita, que ficou bonito. Aprenderam a ver a pele negra de uma forma diferente.

Quando elas nasceram eram bem feinhas, porque menino nasce horroroso. Passado um, dois meses, foram ficando bonitinhas. Eu ficava meio chateada por causa do cabelo crespo delas. Quando elas estavam com 5 anos, levei as duas ao salão e falei: ;Quero fazer algo [um alisamento] que não seja muito prejudicial; algo levinho; só pra dar uma abaixadinha;. Fui muito criticada, mas eu sempre ensinei a elas a cuidarem da beleza. Eu sabia que elas eram lindas e eu queria realçar isso nelas.

Aos 4 anos, elas foram para uma escola particular. Eram as únicas negras e elas estranharam isso. Não queriam mais voltar. Mas a gente ia conversando e elas também se resolviam entre si. Eu também ficava muito chateada [com o preconceito racial contra as filhas]. Ia à escola, conversava com a professora. A gente sempre trabalhou em parceria. Nunca deixei quieto. Nem na minha sala de aula deixo isso acontecer.

Elas nasceram para brilhar, elas vão ser alguém, de um jeito ou de outro. Porque são muito inteligentes. Essa história de modelo atrapalhou um pouco a escola, porque elas sempre foram muito boas alunas. Eu não queria que elas fossem modelos. Via que eram bonitas, que tinham o perfil, via tudo, mas eu não queria porque iria atrapalhar o plano que eu tinha. Eu tinha um plano A, queria que uma fizesse medicina e a outra, direito. Eu sei que elas vão fazer o que quiserem, mas vou incentivando que é pra elas saberem que têm que ser alguém. Elas pediram para eu levá-las à agência, levei, mas não por minha vontade. Na hora em que elas botaram o pé na agência, alguém disse assim: ;Achei a negra pra desfilar;. Porque estavam precisando, o mercado precisa de modelo negra. Parece que a pessoa negra não acredita que tenha um potencial e não vai atrás do sonho."

LEIA AMANHÃ

"Negra burra" - estava escrito no quadro da professora da rede pública Nádia Maria Rodrigues. Ela nunca soube quem escreveu aquilo, mas já vinha enegrecendo desde antes e de um modo nada burro.

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