postado em 04/12/2010 08:00
Desde menino, o goiano Orédio Alves de Rezende, 73 anos, entendeu que não era fácil ter direito à vida. Desde que o pai e o irmão contraíram hanseníase e que toda família sentiu o peso do preconceito, o garoto percebeu que era preciso muita valentia para dar conta de viver. Quando o pai foi levado para o que à época se chamava de leprosário, próximo a Goiânia, o garoto foi para um internato destinado aos filhos dos doentes. A vida de Orédio poderia ter ficado amarrada a esse sofrimento, mas não foi assim que aconteceu. Mesmo doente e padecendo de dores lancinantes, seu Geraldino cuidava da formação do filho. Tão logo o garoto foi liberado do colégio interno, o pai exigiu que ele procurasse uma profissão e o convenceu a fazer o curso de sapateiro. Depois, montou para o filho uma loja de consertos de sapatos no centro de Goiânia. Como estava separado da mulher, o pai de Orédio pediu a ajuda de um amigo para acompanhar a vida do adolescente. ;Foi um fracasso. Em vez de abrir a loja, eu ia jogar futebol;, conta, rindo. Passado algum tempo, fechou a loja e foi ao pai contar a derrota. O velho fazendeiro era um homem calado, mas de decisões firmes: ;Orédio, fiz por você aquilo que um pai pode fazer, mas você não deu valor. O que você pretende fazer agora?;.
O jovenzinho goiano queria voltar para perto da mãe, em Anápolis. ;Vou trabalhar, pai.; Seu Geraldino escreveu uma carta para um amigo pedindo que ajudasse o filho a arrumar um emprego. O destino de Orédio estava sendo desenhado sem que ele soubesse. Em Anápolis, ele conseguiu emprego num conglomerado de empresas da família Pina, que mantinha atividades em diversos segmentos da economia anapolina, da indústria de tecidos à moveleira, de concessionária de autopeças a cinema. Um dos Pinas era casado com a filha do engenheiro Bernardo Sayão.
Dois anos depois de ter ido morar em Anápolis, o jovem funcionário das empresas Pina soube que uma nova capital começava a ser construída ali perto. Orédio ouviu o engenheiro dizer a seu patrão: ;Ítalo, você tem de abrir uma loja em Brasília;. Diante de uma certa hesitação do empresário, Sayão reforçou: ;Se vocês, goianos, não acreditarem naquilo lá, quem vai acreditar?;. Ítalo Pina parecia não crer no sonho, mas o atento funcionário que estava ali próximo começou a gostar da ideia.
Nova capital
Quando os Pinas decidiram finalmente abrir a loja de autopeças em Brasília, Orédio ouviu do contador: ;Não tem quem queira ir pra lá;. Ao que o ex-sapateiro levantou o dedo: ;Não tinha. Agora tem. Eu vou;. A reação foi de espanto: ;Você está doido?;. Ao filho de Geraldino interessava a oportunidade de fazer a vida: ;Quanto ele está disposto a pagar?;. Soube que era mais que o dobro do que ele ganhava, tendo ainda como adicional a comissão sobre as vendas. Esperou terminar o período letivo e, em meados de 1958, estava em Brasília. Antes, porém, Bernardo Sayão já havia escolhido o local onde a Induspina iria funcionar: 2; Avenida, n; 970, Cidade Livre.
Não parecia tão difícil para o audacioso funcionário, mas também não foi tão fácil. ;Chorei quando cheguei sozinho, sem família, sem amigo, sem conhecidos. ;O que é que eu vim fazer aqui?;;. Logo o trabalho incessante engoliu a solidão do goiano. ;Não havia concorrente. Eram só duas firmas que vendiam peças para caminhões. Todas as construtoras eram nossas clientes. E não tinha hora para trabalhar. Como eu morava nos fundos do barraco, qualquer hora do dia ou da noite aparecia alguém procurando uma peça.;
Nos dias que antecederam a inauguração de Brasília, um engenheiro da construtora Camargo Correa apareceu na loja com uma estranha encomenda: precisava de lonas, de quantas unidades houvesse, e não apenas na Induspina, como em toda a Cidade Livre. Orédio não se lembra exatamente quantas lonas Locomotiva conseguiu reunir do seu próprio estoque e vindas de Anápolis, mas acredita que tenham sido mais de 50. Cada uma media 80m2. Ao todo, portanto, ele vendeu aproximadamente 3,8 mil m2 de lona para a construtora. O que o engenheiro pretendia, e fez, foi cobrir todo o Eixão Sul com as lonas para proteger das chuvas a pavimentação da via.
Para quem tinha vindo fazer a vida, ;as coisas estavam caminhando muito bem;. Em menos de dez anos, Orédio passou de gerente a sócio do patrão, apenas na loja de Brasília. Comprou um terreno na 514 Sul, para onde se transferiu. Construiu a nova loja, comprou a parte de Ítalo Pina e, com um pouco mais de tempo, montou quatro outras unidades da empresa, duas em Taguatinga, uma na Asa Norte e uma no Setor de Indústria e Abastecimento (SIA).
Prosperidade
Com tanta fartura de lucros, Orédio pôde patrocinar o tricampeão Nelson Piquet e outros pilotos brasilienses que se destacaram nas pistas. Virou criador de gado gir com vários prêmios obtidos em feiras agropecuárias goianas. Casou-se duas vezes, teve quatro filhos e mora no mesmo lugar há mais de 50 anos. Mas os negócios já não produzem gráficos com linhas ascendentes. ;Há dez anos que perco dinheiro. Já vendi duas lojas;, ele diz, com rara sinceridade. ;Temos nome, temos crédito, temos respeito dos concorrentes, mas não acompanhamos a evolução do mercado, perdemos espaço.; Então ele se lembra que, numa das visitas que fez ao pai quando os negócios estavam indo muito bem, seu Geraldino avisou: ;Meu filho, toma cuidado. Conservar é mais difícil do que ganhar;. Foi uma das poucas vezes que não ouviu o pai: ;Entrou por aqui, saiu por aqui;.
Nesses 52 anos, Orédio tirou férias apenas uma vez. Passou 18 dias numa praia do Espírito Santo com a família, sob pressão da mulher e dos filhos. Depois e antes disso, nunca. No tempo da construção e nos primeiros anos de Brasília, gostava de passear no aeroporto. ;Era a nossa única diversão. Íamos ver quem chegava e quem saía. Havia um restaurante, encontrávamos os amigos.; Daí nasceu a AFA, Associação dos Frequentadores do Aeroporto. Apesar de ter sido um dos empresários mais influentes da nova capital, nunca quis ser político: ;De maneira geral, o político tem que mentir, e eu não sei mentir;. Dizer o que pensa foi uma das virtudes que aprendeu com o pai. Seu Geraldino também ensinou ao filho que ;é mais fácil fazer o que é certo do que fazer o que é errado;.
Filho de Orédio e neto de seu Geraldino, o jornalista Flávio Resende conviveu com o avô até os 18 anos. Ele se lembra de vê-lo de bicicleta, já curado da hanseníase, indo comprar doces para os netos. A doença o havia deformado. Flávio então perguntou ao avô: ;Vô, como é a dor?;. E ouviu: ;Nunca deixei de sentir dor, meu filho. Senti meu corpo apodrecer a vida inteira e me acostumei a conviver com a dor;.
Quando contava a história de sua vida, Orédio chorou duas vezes. Nas duas, lembrava-se do pai.