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Estudantes do Cruzeiro são premiados em festival de teatro em São Paulo

O espetáculo, que terá temporadas em Brasília e em São José do Rio Preto, como convidado, é uma criação coletiva inspirada em obras de importantes autores nordestinos

postado em 08/12/2010 08:30
O espetáculo, que terá temporadas em Brasília e em São José do Rio Preto, como convidado, é uma criação coletiva inspirada em obras de importantes autores nordestinosDeitada de costas sobre o chão, em meio às folhas secas, a mulher grita e sente que o bebê virá. Diante dela, acocorado, seu marido estende os braços para acolher o filho. Em lugar do pequeno, porém, o que sai é um punhado de areia, que o homem vê escorrer entre os dedos. Depois, o casal se afasta: ele caminha curvado e sem vontade, enquanto ela se arrasta em direção a uma bacia, apanha um pano molhado e começa a limpar as pernas, assustada.

A cena é forte e sintetiza o espetáculo teatral Seca, escrito e encenado pelo grupo Cutucart, composto por alunos do Centro Educacional 1 do Cruzeiro. O trabalho dos jovens, em sua maioria moradores da Cidade Estrutural, foi premiado no Festival Luz, Palco e Ação (LuPA), realizado no mês passado em São José do Rio Preto, interior de São Paulo.

A peça ganhou os troféus de três das sete categorias em competição: roteiro, cenografia e ator ; nesse caso, para Iuri Pereira, 18 anos. Também levaram o prêmio especial para pesquisa corporal. A atriz Bianca Oliveira, 17, foi indicada a melhor atriz, e o professor Getúlio Cruz, que coordena o Cutucart, a melhor direção. No festival, dedicado ao teatro amador, Seca concorreu com outros sete espetáculos e foi considerado o segundo melhor, atrás apenas de Pessoas ou coisas podem mudar o mundo... Mas hoje nada aconteceu, da Cia. dos Aflitos, de Belo Horizonte (MG). A ida ao LuPA foi a estreia do grupo fora do Distrito Federal. ;Os prêmios falam por si. Os meninos de Brasília ganharam por total merecimento. Eles estudaram bastante, têm um trabalho anterior bem fundamentado, mostraram bastante disciplina;, avalia a organizadora do festival, Denise Ricardo.

Embora tenha voltado à capital com um currículo mais vistoso, a turma evita o autoelogio. ;A premiação foi só mais um detalhe. O que valeu foram as experiências que tivemos, as amizades que fizemos;, comenta Iuri, estudante do 3; ano. ;Claro que trazer os prêmios foi bom, mas só ter ido lá, ter conhecido tanta gente boa; E nós éramos os mais novos;, orgulha-se Angela Amorim, 16 anos, do 2; ano. Em Brasília, Seca só foi apresentada três vezes: duas no teatro Conchita, da Faculdade Artes Dulcina de Moraes, e uma no Centro Cultural Rubens Valentim, do Cruzeiro. Em 2011, a intenção é levar a montagem a outros palcos da cidade. ;Se Deus quiser, os prêmios do LuPA são chaves que vão nos abrir muitas portas;, espera Iuri.

Criação coletiva
Primeiro texto escrito pelo Cutucart, Seca foi criada em grupo. No enredo, um casal vive em um rincão do semiárido nordestino. Um árvore esturricada e um pequeno açude compõem a paisagem, cabendo ao espectador entrever o sol incandescente. O marido, rude, repele a mulher, que é lavadeira e não pode ter filhos. Um dia, sedenta por dar e receber carinho, ela adota dois garotos que brincavam e perambulavam pelo lugar, abandonados. ;O espetáculo trabalha com muitos objetos de cena simbólicos;, informa Bianca. Um deles é uma espécie de ninho de passarinho pintado de vermelho. O objeto foi criado artificialmente pelo marido e, a cada filho perdido pela mulher, ele enreda um novo graveto no ninho.

Criado em 2006, o grupo é formado por 15 alunos, além de Getúlio e seu colaborador, o preparador corporal Denis Bueno. Parte dos jovens atua, enquanto outra integra a equipe técnica, responsável por quesitos como sonoplastia, cenografia e iluminação. Nenhum deles jamais sofreu algo parecido com a escassez de água que assola parte do Nordeste.

;Quisemos falar, principalmente, da seca interna das pessoas, a seca afetiva, a da vontade irrealizada;, observa o estudante do 1; ano Lucas Isacksson, 17 anos. O tema surgiu em laboratórios realizados pelo grupo. ;Eles tiveram que criar cenas a partir de palavras como ;morte;, ;espera;, ;fome;, e a seca estava indiretamente presente em vários momentos;, recorda Denis. ;Estava todo mundo aflito para fazer um trabalho próprio;, conclui.

Depois que o tema foi definido, o Cutucart passou a desenvolver sua linguagem. ;Foi então que começamos a pesquisa;, lembra Getúlio. Segundo ele, o grupo busca trabalhar mais com gestos e movimentos corporais que com palavras. ;Nesse campo, nossas referências são atores e dramaturgos como (o francês) Jacques Lecoq, (o polonês) Jerzy Grotowski e, no Brasil, Denise Stoklos e Débora Colker;, enumera. ;Vimos que a palavra se tornava inútil, podíamos usar apenas o corpo para nos expressar;, comenta Lucas.

Inspiração
Para a concepção do espetáculo, os jovens leram obras como Vidas secas, romance de Graciliano Ramos, e Morte e vida severina, poema de João Cabral de Melo Neto. Também assistiram ao clássico filme Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, e até a trechos da novela Senhora do destino, da TV Globo. ;Não é uma realidade nossa, mas o público se emociona, entra em cena conosco e acaba se identificado com aquela seca interior;, acredita Angela.

Além dos prêmios, a participação no festival de São José do Rio Preto rendeu ao Cutucart um convite para levar o espetáculo a Belo Horizonte. A Cia. dos Aflitos, responsável pela peça considerada a melhor do LuPA, chamou o grupo para se apresentar em seu teatro, na capital mineira. A montagem ainda não tem data definida. ;A nossa companhia está organizando um projeto de intercâmbio com outros grupos do Brasil, para que eles nos mostrem o processo de trabalho deles e nós mostremos o nosso;, revela uma das integrantes da turma de Minas, Ana Reis. ;Vimos o trabalho dos meninos (do Cutucart) e gostamos muito. Eles são superesforçados. A gente também trabalha muito com teatro físico, com o corpo, mais que com palavras.;

O grupo do Cruzeiro também foi chamado para voltar a São José do Rio Preto e encenar Seca em um centro cultural recém-inaugurado. Além disso, com a conquista do segundo lugar, garantiu vaga para o LuPA do próximo ano. Durante o festival, todos os integrantes participaram de três oficinas gratuitas de interpretação.

A viagem de avião até São Paulo foi custeada pelo Sesi-DF. O patrocínio surgiu após o Correio publicar reportagem, em 27 de outubro, noticiando a seleção de Seca para o LuPA. Em contrapartida ao auxílio do Sesi, o grupo realizará dez apresentações do espetáculo em Brasília. ;Ainda precisamos acertar as datas, mas provavelmente será no Teatro do Sesi em Taguatinga;, afirma Getúlio. ;No próximo ano, queremos nos desvincular um pouco da escola. O grupo já tem um trabalho maduro e extenso o bastante para se arriscar no circuito.; Além de Seca, a turma pretende levar aos palcos a peça O verbo é o lixo, selecionada para a 10; edição do Festival Teatro na Escola, realizada em novembro pela Fundação Athos Bulcão. Em 2011, a intenção é se inscrever em editais públicos de ocupação de espaços cênicos. ;Fora isso, vamos buscar parcerias com instituições não vinculadas a governo, como a (Faculdade) Dulcina (de Moraes);.

Alguns integrantes do grupo, prestes a concluir o ensino médio, preparam-se para cursar artes cênicas. Wanderson de Sousa, 20 anos, e Tuan Emanuell, 17, passaram na prova de habilidade específica na Universidade de Brasília e aguardam o vestibular da instituição, agendado para os dias 18 e 19 deste mês. Por sua vez, Iuri pretende seguir os passos da colega Bianca Oliveira, que deixou a escola do Cruzeiro no ano passado e ingressou logo na Faculdade Dulcina. Iuri mora na Estrutural e, para pagar as mensalidades, arrumou um emprego de costureiro em uma fábrica de estofados para automóveis.

Enquanto o futuro não chega, os jovens curtem os louros do presente. ;Durante a premiação do LuPA, toda vez que anunciavam o grupo como vencedor, a gente ficava assim;, diz Deis Buenos, fazendo cara de pasmo. ;Adorei ver essa molecada explodir.;

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