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Casa colonial de 200 anos é um caso de amor de médico pioneiro de Brasília

postado em 11/12/2010 08:00
Dentro e ao redor da Fazenda Guariroba, parece que o tempo parou: Scartezini conservou o imóvel e a propriedade com as mesmas características secularesDepois dos primeiros seis anos em Brasília, o médico Manoel Scartezini não aguentava mais a monotonia dos clubes recreativos da cidade, única opção de lazer para a família, ele, a mulher e dois dos quatro filhos já nascidos. Era 1964. Scartezini decidiu procurar uma chácara nos arredores da capital, onde pudesse passar os fins de semana e feriados de um modo menos artificial, como ele mesmo diz. Encontrou a Fazenda Guariroba e por ela se apaixonou ;à primeira vista;. Ceilândia nem existia, mas a sede da propriedade que daria nome a um dos bairros da cidade já estava lá há mais de um século, talvez há dois.

Passados quase 50 anos desde que a família Scartezini arrendou a casa, ela se mantém preservada em suas características originais. É uma construção com alicerce de pedra, paredes de adobe, vigas e portais de aroeira bruta, assoalho de tábuas rústicas e graúdas, com um quintal de abacateiros, jaboticabeiras, mangueiras e, ao lado, uma capela construída pelo médico sobre um alicerce original. ;Quando cheguei, os moradores da redondeza me disseram que havia uma capela ali, mas não souberam me dizer quem era o padroeiro. Como minha mulher é muito religiosa, construí outra capela no mesmo lugar;, conta Scartezini. Tudo indica que a casa, a menos de 50km do Plano Piloto, tenha aproximados 200 anos.

Scartezini, nos primeiros anos, idealizava Brasília A sede da Fazenda Guariroba fica num lugar de topografia privilegiada, um vale que surge ao pé de uma sucessão de pequenos morros e termina no Córrego Melquior, em trecho ainda protegido por uma mata de galeria. A casa de paredes brancas e portais azuis tem banheiro do lado de fora, cozinha com fogão a lenha alguns degraus abaixo do nível do restante do imóvel e, a menos de 30 metros, ainda existe um muro de pedras característico do período da escravatura.

A família Scartezini deu outro nome para a Fazenda Guariroba: Sítio São Francisco. E durante muitos anos, a casa antiga recebeu amigos, conhecidos, desconhecidos, gente que tinha notícias de que em algum ponto da DF-180, entre Samambaia, Taguatinga e Ceilândia, havia uma fazenda cheia de frutas, jaboticabas, em especial. ;Até Francisco Cuoco apareceu por aqui;, conta, rindo, Ana Lúcia, filha do médico. Numa de suas vindas a Brasília, possivelmente para alguma apresentação teatral, o ator teve um mal-estar e foi atendido no Hospital de Base, onde Scartezini trabalhava. Do socorro médico, Cuoco foi levado para um passeio à chácara.

O começo
A vida profissional do dono da Fazenda Guariroba começou e terminou em Brasília. Mineiro de Jacutinga, Manoel Scartezini fez os primeiros estudos em Goiânia e cursou medicina no Rio de Janeiro. Quando concluía o curso, em 1958, soube que ;um maluco chamado Juscelino Kubitschek estava construindo uma nova capital;. Desde antes, Scartezini havia decidido que, depois de formado, voltaria para Goiás e se dedicaria a atender as populações interioranas. Mas o projeto de JK mudou parcialmente seus planos. Veio para Goiás, porém para a capital. ;Brasília estava me esperando e eu vim pra cá esperar por ela;, ele diz, poeticamente.

O jovem médico foi trabalhar no HJKO, o Hospital Juscelino Kubitschek de Oliveira, um conjunto de galpões e casas de madeira próximo à Cidade Livre e que hoje abriga o Museu Vivo da Memória Candanga. Um dos primeiros a chegar a Brasília, Scartezini foi morar no alojamento próximo ao hospital. ;Muitas vezes eu ia à noite para os fundos do alojamento e ficava olhando as luzes do Plano Piloto e pensando como é que seria Brasília;, ele se recorda, aos 80 anos. Imaginava, nos primeiros anos, que a nova capital seria uma cidade organizada, ;mais honesta, livre dos vícios de outras capitais;. Mas parece não se amargurar de todo com o destino de Brasília, 50 anos depois. Ela é hoje ;o que foi possível;.

Seus 36 anos de exercício profissional foram dedicados, depois do fechamento do HJKO, ao Hospital de Base. Urologista de formação, parteiro no tempo da construção por força da necessidade, Scartezini se transferiu para a radiologia até se aposentar, no início dos anos 1990. A casa da Fazenda Guariroba continuou sendo a utopia da família. Uma das filhas, Ana Lúcia, se casou na capelinha e alguns netos também foram batizados lá. Mas agora, quem mora lá é Emanuel, um dos filhos. Veterinário, ele pretende transformar a casa centenária num museu vivo para ser integrado ao roteiro turístico rural de Brasília.

Mas há algumas etapas a vencer, uma delas, fundiária e outra, histórica. A família ainda não conseguiu regularizar a propriedade. Emanuel diz que pretende ir esta semana a Corumbá de Goiás pesquisar a origem fundiária da terra. ;Consta que a Fazenda Guariroba ia daqui a Luziânia;, diz o veterinário, que se lembra do entusiasmo com que o historiador Paulo Bertran visitava a casa. Um desenho a bico de pena da sede está na página 191 de História da terra e do homem no Planalto Central, livro mais importante de Bertran.

SINAIS DA IDADE
; ;Se a casa da Fazenda Guariroba não tem 200 anos, tem todas as características da arquitetura local dos últimos dois séculos;, diz a pesquisadora Lenora Barbo, da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília (UnB), que estuda a arquitetura vernacular e as estradas antigas do Distrito Federal. Lenora explica que é difícil calcular, com razoável segurança, a idade da edificação, por falta de documentos comprobatórios. O que mais a surpreendeu foi o fato de a fachada da Guariroba ser igual à de duas outras, uma na Ponte Alta, no Gama, e outra em Planaltina. A única diferença é que na primeira há uma varanda lateral construída pela família Scartezini. Donde a pesquisadora conclui que ou elas foram construídas por um mesmo mestre de obras ou por discípulos de um primeiro. ;Percebe-se a presença muito forte de uma arquitetura vernacular que se repete em regiões distintas do Distrito Federal;, observa. Vale ressaltar que, há 200 anos, as três casas ficavam muito distantes uma da outra, dada a falta de estradas e comunicação. Lenora Barbo lamenta que o governo do Distrito Federal não tenha uma política de conservação e proteção dessas casas nem reconheça ;a importância dessa arquitetura para a construção da identidade do território da capital federal;.

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