postado em 12/12/2010 08:30
;; no âmbito da nossa arquitetura onde são tantos os valores autônomos com vida própria, ele (Lelé) e o Oscar (Niemeyer) se completam. Oscar Ribeiro de Almeida Niemeyer Soares, arquiteto artista: domínio da plástica, dos espaços e dos voos estruturais, sem esquecer o gesto singelo ; o criador. João da Gama Filgueiras Lima, o arquiteto onde arte e tecnologia se encontram e se entrosam ; o construtor. E eu, Lucio Marçal Ferreira Ribeiro de Lima e Costa ;- tendo um pouco de uma coisa e de outra, sinto-me bem no convívio de ambos, de modo que formamos, cada qual para o seu lado, uma boa trinca: é que sou, apesar de tudo, o vínculo entre o nosso passado, o lastro ; a tradição.;Lucio Costa, em Registro de uma vivência, reproduzido em Olhares
Se há um notável arquiteto brasileiro que se dedicou verdadeiramente a procurar soluções para uma arquitetura social, combinando beleza, tecnologia, praticidade, alegria e arte, ele se chama João da Gama Filgueiras Lima, o Lelé. Houvesse um pódio para os três maiores arquitetos brasileiros, ao lado de Lucio Costa e Oscar Niemeyer estaria o Lelé. Em outro pódio, o dos mais proeminentes arquitetos da virada do século, se veriam Niemeyer, Paulo Mendes da Rocha e Lelé.
Lelé, Lelé, Lelé. Afinal, quem é e o que ele produziu para ser tão conclamado e tão pouco conhecido fora de Brasília, Salvador e do restrito meio acadêmico e arquitetônico? E por que razão o Brasil o desconhece? A resposta a essas perguntas está em Olhares, visões sobre a obra de João Filgueiras Lima, lançado na quinta-feira passada na Universidade de Brasília, ainda no rastro da inauguração do Beijódromo e das comemorações pelos 50 anos da capital.
Caso venha a ler este texto, Lelé ficará incomodado. ;Tenho dificuldade com elogio. Com crítica, não. Leio, ouço, analiso, vejo se houve ou não injustiça, se preciso me defender e tudo bem.; Foi assim, constrangido, que ele recebeu a homenagem-surpresa preparada pela UnB, o lançamento do livro. Afinal, como ele mesmo comenta, alguns dos mais importantes críticos e historiadores de arquitetura do país se reuniram para analisar sua obra. (veja quadro). ;Fico profundamente agradecido. Evidentemente, estão me dando importância demais;, diz o inacreditável Lelé, 78 anos. O arquiteto que construiu, entre outras muitas obras, os hospitais da Rede Sarah no país, terá mais motivos para se sentir embaraçado. Há dois outros livros a serem lançados proximamente, um sobre os hospitais que projetou e outro, um catálogo da exposição de sua obra, realizado no Museu da Casa Brasileira, este ano.
O livro publicado pela UnB, porém, tem alcance inédito. ;Não há nenhuma outra obra sobre ele que reúna, em perspectiva global, sua produção desde o início até a mais recente;, diz a professora Cláudia Estrela Porto, da Faculdade de Arquitetura da UnB, organizadora de Olhares. O livro nasceu de um número especial, de novembro de 2009, que a revista francesa Le Visiteur, publicada pela Sociedade Francesa de Arquitetura, dedicou a João Filgueiras Lima. A ideia era publicar uma versão brasileira da revista que acabou resultando num livro no qual se incluem três artigos publicados na Le Visiteur. ;Quando expus ao reitor (da UnB, José Geraldo de Sousa Junior), ele se entusiasmou e daí nasceu Olhares.;
São 173 páginas, em tamanho 26cm x 23cm, material rico em fotos e com textos que reconstituem a trajetória do arquiteto desde que se formou no Rio de Janeiro e veio para Brasília, em 1957. Ensaios que definem o lugar de Lelé na arquitetura moderna brasileira e internacional, o modo como foi traçando seu próprio e singular caminho, seu compromisso com a arquitetura social, as circunstâncias (quase trágicas) que o levaram a conhecer o ortopedista Aloysio Campos da Paz, os projetos da Rede Sarah, as casas que riscou para os amigos (em Brasília e Salvador), as suas obras na UnB, as razões pelas quais ele é um ;herói desconhecido;, nas palavras de André Corrêa do Lago e, nisso tudo, o temperamento discreto, a recusa aos holofotes e as habilidades musicais (Lelé toca e compõe para acordeão, flauta e piano).
Arquiteto formado no Rio de Janeiro e construído em Brasília, João da Gama Filgueiras Lima projetou, ao longo de mais de meio século de atividade, ;as mais diversas tipologias arquitetônicas;, como detalham Hugo Segawa e Ana Gabriella Lima Guimarães: habitações coletivas, casas, hospitais, escolas, creches, indústrias, edifícios em altura, edifícios administrativos, auditórios, igrejas, clubes, estações de transporte urbano, passarelas, pontes, abrigos, sistemas de contenção e drenagem, tudo isso em ambientes variados ; centros urbanos, zonas rurais, favelas, centros históricos.
Se a construção de Brasília foi ;uma referência crucial; para uma geração de arquitetos brasileiros, como escreve Ana Luiza Nobre, para Lelé ela foi definidora de seu próprio destino profissional, não no que ele tem de geográfico e circunstancial, mas na formação de sua identidade. Ainda Ana Luiza: ;Mais do que a concentração, no canteiro da nova capital, de materiais e sistemas construtivos de ponta (como o concreto protendido e a estrutura metálica, presentes respectivamente na Rodoviária de Lucio Costa e no Congresso de Niemeyer), são a precariedade e a urgência que deixam marcas profundas no arquiteto;. Dessa experiência em diante, escreve a ensaísta, ;será quase impossível pensar sua obra (a de Lelé), senão atentando para sua descendência direta do canteiro de obras de Brasília;.
Assim, o arquiteto que construiu uma das primeiras superquadras de Brasília teve de erguer o acampamento de madeira para ele mesmo morar com os operários, varou madrugadas estudando e calculando os projetos e explorando as potencialidades dos pré-fabricados. Ao mesmo tempo, manteve-se atualizado com a tecnologia construtiva e acasalou sua arquitetura com o lirismo lúdico e colorido de Athos Bulcão. E fez esse casamento com generosidade exemplar: ;A relação entre Athos e Lelé mostra o quanto o arquiteto não teme o talento do artista, e o quanto está pronto a dividir com os que o cercam o êxito de uma obra;, escreveu Corrêa do Lago.
Mesmo trabalhando intensamente, Lelé passou quase despercebido ao longo dos 40 anos pós-Brasília, observa Corrêa do Lago. Muito dessa cegueira deve-se ao seu temperamento, mas também à sua arquitetura, que, apesar de bela, é econômica em ;soluções estruturais espetaculares e em curvas;. O que João Filgueiras Lima fez, e mais recentemente o Brasil vem descobrindo, foi ter abandonado ;os desvios excessivamente formalistas de seus contemporâneos, demonstrando que se podia mudar o mundo a cada canteiro de obra, sem barulho, tendo como objetivo tornar mais felizes os menos favorecidos;. E conclui Corrêa do Lago: ;Nesse sentido, Lelé é o herói desconhecido da arquitetura contemporânea mundial;.
ENSAIOS E ENSAÍSTAS
A tecnologia sob um novo olhar
Maria Elisa Costa, arquiteta, filha de Lucio Costa
Herói desconhecido
André Aranha Corrêa do Lago, diplomata, estudioso de arquitetura
João Filgueiras Lima: arquitetura no limite
Ana Luiza Nobre, professora de arquitetura da PUC-Rio e membro do Comitê Internacional de Críticos de Arte
O mestre-construtor
Yopanan Conrado Pereira Rebello e Maria Amélia Devitte Ferreira D;Azevedo Leite. Engenheiro, professor de arquitetura da Universidade São Judas Tadeu, em São Paulo. Professora de Arquitetura da PUC de Campinas (SP)
Lelé: o criador, o construtor, o contexto
Hugo Segawa e Ana Gabriella Lima Guimarães. Pesquisador do CNPq, autor de diversos livros sobre arquitetura. Arquiteta, autora de dissertação de mestrado e livro sobre a obra de Lelé
As casas dos amigos
Cláudia Estrela Porto, vice-diretora da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília
O Lelé na UnB (ou o Lelé da UnB)
Andrey Rosenthal Schlle, diretor da Faculdade de Arquitetura da UnB
Olhares, visões sobre a obra de João Filgueiras Lima
Organização de Cláudia Estrela Porto. Editora UnB, 173 páginas. Preço: R$ 95