Cidades

Jovens de bairros de Planaltina travam guerra há mais de duas décadas

Cerca de 70% dos homicídios ocorrem por rixas motivadas pelo local de moradia da vítima e devido ao tráfico

Guilherme Goulart
postado em 13/12/2010 07:58
Parente de Ana Beatriz mostra onde foram feitos os disparosA tarefa da menina Ana Beatriz Pereira de Lima, 8 anos, consistia em largar o lixo na calçada de casa. Não levaria cinco minutos para voltar ao lar da família. Mas a atenção da moradora da Vila Buritis III, local conhecido como Buraco Fundo de Planaltina, acabou desviada pela criançada da vizinhança. Acompanhada de uma amiga, ela atravessou três ruas e alcançou a Vila Buritis II ; o Pombal. A brincadeira mal começou e logo terminou em tragédia. Dois homens em uma motocicleta dispararam várias vezes contra outro que fugia a pé pela Quadra 10. Um dos tiros atingiu a cabeça de Ana Beatriz.

A morte da garota, em 8 de novembro, revelou o drama de quem mora em uma das localidades mais violentas do DF. Lá, o endereço determina o inimigo, crianças pegam em armas e famílias vivem com medo. As brigas territoriais, impulsionadas pelo tráfico de drogas, motivam 70% dos assassinatos ocorridos em pelo menos cinco bairros de Planaltina ; juntos, reúnem mais de 60 homicídios nos últimos dois anos. ;Os crimes ocorrem por vingança e por conta das drogas. São jovens que, se chegam vivos aos 30 anos, acabam presos;, afirmou o delegado adjunto da 31; Delegacia de Polícia, Júlio César de Almeida.

A unidade policial fica em um ponto estratégico da cidade de cerca de 230 mil habitantes, distante 38km do Plano Piloto. O prédio se ergue entre várias comunidades que compõem o Setor Residencial Leste. Enxerga-se dali o Pombal, bairro surgido no início da década de 1980, por conta das campanhas de erradicação de invasões (CEI) no DF (leia Memória). É o mais perigoso da região. Os traficantes que têm bocas de fumo no local travam uma guerra com os de localidades vizinhas: Jardim Roriz (ou Agreste), Arapoanga e Buraco Fundo. O resultado é a violência.

A perseguição entre inimigos que acabou com a morte de Ana Beatriz ocorreu no Pombal, a menos de 200m da 31; DP. A menina perdeu a vida enquanto brincava no Conjunto O da Quadra 10. O tiro fatal acertou a cabeça da vítima, que se submeteu a pelo menos duas cirurgias no Hospital de Base do Distrito Federal. Passou nove dias internada, mas não resistiu ao estrago provocado pelo ferimento. Ana Beatriz, uma criança alegre e apaixonada pela vida, morreu a poucas ruas de casa, no Buraco Fundo. Os familiares ouviram o tiroteio.

O Correio circulou por dois dias na região. Ouviu policiais, moradores e comerciantes, apesar do pouco movimento nas ruas. Chamam a atenção os lotes pequenos, alguns sobrados em construção e as grades pesadas instaladas em portas e janelas. Não há marcas de pichações, mas também faltam opções de lazer.

Jovens a serviço do tráfico se espalham por becos e vielas. Reparam em tudo e a maioria se locomove em bicicletas. À noite, as famílias não se atrevem a sair de casa. Enxergam de dentro dos lares meninos a caminhar pelas ruas com armas na cintura. Refugiam-se dos tiroteios.

Nesse contexto, os parentes de Ana Beatriz viraram reféns da violência. A mãe e a tia da garota moram em casas separadas, mas quase vizinhas. Desde a morte da menina, amadurecem a ideia de deixar o Buraco Fundo, por conta da proximidade com o Pombal. Têm medo e pouco saem de casa. ;Queremos mudar. Vivo tombando com essa turma da Quadra 16. Eles acabaram com a vida da minha filha e com a minha vida;, contou a mãe de Ana Beatriz. A mulher tem mais duas filhas pequenas, de 3 e 5 anos. Uma delas não vai mais à escola.

A fachada da casa da criança ganhou uma faixa em homenagem a ela. A mensagem não deixa a vizinhança esquecer a tragédia. Para a tia da vítima, os bairros ao redor do Pombal não são lugares para se criar os filhos. ;Não quero isso aqui para as minhas crianças. A gente começa a se preocupar com o futuro deles aos 7 anos. Tem menino dessa idade com arma na mão. A gente vê isso sempre e todo dia tem tiroteio por aqui;, reclamou uma tia de Ana Beatriz. Os dois jovens responsáveis pelo crime, um deles adolescente, estão identificados. Mas, segundo policiais da 31; DP, fugiram após o homicídio.

Bala perdida
Doze dias após a morte da garota do Buraco Fundo, outra moradora de Planaltina perdeu a vida por conta de brigas de inimigos. O crime ocorreu em Arapoanga, em 20 de novembro. A dona de casa Cleise Campos da Silva, 37 anos, acompanhava uma partida de futebol ao lado do filho e acabou atingida por dois tiros no peito.

Os dois estavam sentados em uma arquibancada da Praça do Estudante. Assim como várias pessoas presentes, mãe e filho foram surpreendidos por uma perseguição protagonizada por turmas de jovens armados.

Investigação realizada também pela 31; DP revelou que um homem munido de um revólver calibre .38 atirou três vezes contra um adolescente de 17 anos. Duas balas, provavelmente perdidas, atingiram Cleise e uma acertou o abdômen do garoto perseguido.

O motivo da desavença seria um esbarrão ocorrido entre integrantes de grupos de desafetos. O jovem ferido não tinha histórico de violência registrado na Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA), mas havia sofrido uma tentativa de assassinato em 2005 ; não se sabe se há relação entre os crimes.

Levantamento
A ação criminosa das gangues do Distrito Federal ganhou um mapeamento elaborado pela Divisão de Inteligência da Polícia Civil, realizado em 2009. O levantamento aponta a existência de oito gangues em Planaltina, sete em São Sebastião, duas em Taguatinga Norte e duas no Setor Sul do Gama. Sabe-se, no entanto, que há grupos em Ceilândia, no Plano Piloto e em Santa Maria. Em Planaltina, os policiais listaram os crimes cometidos pela gangues: homicídio, latrocínio, tráfico de drogas, porte de arma, assaltos a banco e a comércio e furto.

MEMÓRIA
Conflito histórico

Planaltina abriga hoje cerca de 230 mil habitantes. Assim como a maioria das cidades ao redor do Plano Piloto, enfrentou um crescimento desordenado. A maioria dos loteamentos começou a ser implantada a partir dos anos 1960, quando passou a receber pessoas sem condições de se fixar em Brasília. O Setor Tradicional acabou ampliado, segundo dados da Administração Regional de Planaltina. Logo surgiram a Vila Vicentina, o Setor Residencial Leste e outros.

Foi nos anos 1990 que se iniciou a guerra entre as gangues. Cada comunidade formou o próprio grupo, com apelidos que se confundem com as localidades. Pombal é a Vila Buritis enquanto o Setor Residencial Norte se refere ao Agreste ou ao Jardim Roriz. Vila Buritis II, por exemplo, é o Buraco Fundo. No começo, a disputa era por territórios, mesmo que os integrantes não soubessem o que fazer com as áreas conquistadas. Em pouco tempo, o tráfico de drogas começou a pautar os conflitos. No início dos anos 1990, pelo menos 30 pessoas morreram assassinadas em um período de dois anos.

As principais desavenças hoje ocorrem entre jovens do Pombal, que brigam entre si e com moradores de bairros vizinhos. As rixas e as mortes continuaram por conta da chegada das novas gerações, apesar de a situação ter se acalmado no início dos anos 2000. Nesse época, quase todos os líderes históricos das gangues de Planaltina acabaram presos ou mortos antes dos 30 anos.

Cerca de 70% dos homicídios ocorrem por rixas motivadas pelo local de moradia da vítima e devido ao tráfico

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