Guilherme Goulart
postado em 13/12/2010 08:02
A polícia atribui o incremento da violência nos bairros mais carentes de Planaltina ao avanço do consumo e do tráfico de crack na região. Assim como no restante do Distrito Federal, as pedras tomaram o lugar da merla na preferência dos traficantes e dos usuários do Pombal, de Arapoanga, do Buraco Fundo e do Jardim Roriz. Com a possibilidade de aumento dos lucros, os donos das bocas declararam guerra em busca de novos pontos. ;Com esse negócio de crack, ficou muito ruim. Mas combatemos isso de forma integrada;, explicou o delegado adjunto da 31; Delegacia de Polícia, Júlio César de Almeida.A repressão e a investigação em conjunto realizadas por todas as seções especializadas na unidade policial fizeram com que os assassinatos na região caíssem pela metade nos dois últimos anos. Dados preliminares divulgados pela 31; DP apontam para cerca de 40 homicídios em 2010 e 20 neste ano. ;Aqui, a gente faz o nosso trabalho, mas é como enxugar gelo. Por causa do crack, eles (os traficantes) substituem com extrema rapidez o aviãozinho (responsável pela venda na rua). A gente prende pela manhã e à tarde tem outro no mesmo ponto;, contou um agente da seção de tóxicos e entorpecentes.
Jovens de dois bairros inimigos ouvidos pelo Correio revelaram uma rotina de violência e de medo. Apesar de envolvidos no contexto da violência, deram detalhes da guerrilha urbana. Demonstraram coragem e às vezes orgulho em participar dos embates, mas também insegurança e falta de perspectiva de futuro. ;Tenho dois filhos pequenos. Não sei o que vai ser deles nem o que vai ser de mim. Não sei nem se vou estar vivo mais para frente, como vou pensar no futuro deles?;, contou Paulo*, 21 anos, morador do Arapoanga (leia depoimento).
Apesar da pouca idade, ele acumula crimes. Parte deles escancarada em tatuagens coloridas. Entre cruzes, desenhos e mensagens religiosas, Paulo carrega na perna o 157, número do artigo do Código Penal referente ao roubo. Mostrou a marca com sorriso no rosto, mas acabou na cadeia por causa do assalto. O jovem também cometeu dois homicídios, em 2004. Mas alegou que agiu em defesa do irmão, então alvo de dois inimigos. O irmão levou um tiro e ficou paralítico. A dupla morreu baleada por Paulo.
As desavenças por conta dos endereços também o fizeram perder vários amigos de infância. As tragédias, porém, não o afastaram das ruas. Na última quarta-feira, PMs encaminharam Paulo e o irmão mais novo à 31; DP. Passaram horas no local por conta de atitudes suspeitas, mas os agentes os liberaram depois de prestarem depoimentos. A detenção não o abala. Ele tem medo mesmo é de circular pelo Pombal ou pelo Buraco Fundo. ;Nem chego perto;, disse.
Música de igreja
A reportagem também conversou com um jovem de 16 anos. Apesar de conhecido na região por envolvimento com tráfico e gangues, negou qualquer vínculo com a violência. O garoto, no entanto, deu informações sobre a área assolada pela violência. ;Eu vejo muita pistola. Outro dia, vi três caras armados em frente à minha casa. Todos passaram com revólveres;, disse o morador do Pombal.
O adolescente revelou ainda uma das formas de atuação dos criminosos. Segundo ele, é comum os bandidos circularem de carro em busca de desafetos. Mas um detalhe indica a malandragem das gangues, que tomam o cuidado de manter no carro um CD de músicas de igreja. ;Quando vão cometer crimes, os caras colocam música religiosa para disfarçar, se rolar uma batida. Quem vai desconfiar que eles estão no crime?;, questionou. O jovem disse ainda que rohypnol ; remédio para dormir usado para aplicar o golpe Boa Noite Cinderela ; circula com frequência no lugar.
* Nome fictício a pedido do entrevistado.
Depoimento[SAIBAMAIS]
;Aqui em Planaltina, os inimigos se conhecem pelo local de moradia. Se mata por causa de droga, mas tem gente que quer matar para ganhar fama. A droga tá um pouco em falta, mas tem maconha e crack. Perdi muitos amigos aqui, até perdi a conta. Muitos amigos caíram na bala. Moro no Arapoanga, bairro inimigo do Pombal. Aqui, é o Pombal contra todos. Já matei dois.
Eles atacaram o meu irmão e eu reagi. Matei os dois na bala, mas meu irmão ficou paralítico. Tenho dois filhos pequenos. Não sei o que vai ser deles, nem o que vai ser de mim. Não sei se vou estar vivo, como vou pensar no futuro deles? Ando nas ruas com medo, nem chego perto do Pombal, já que sou do Arapoanga."
Paulo* tem 21 anos. Responde a processos por dois assassinatos e roubo
Falta de planejamento
A presença recorrente de gangues de jovens em Planaltina pode ser explicada a partir do crescimento urbano desorganizado. Invasões, ausência de projetos urbanísticos e descaso com as políticas públicas fizeram com que inúmeros bairros se desenvolvessem sem assistência básica e sem equipamentos públicos. ;A violência das últimas décadas é um reflexo das configurações dos assentamentos. Quem melhora de vida, por exemplo, não fica ali. Por isso, acabam abandonados e sem investimento;, explicou o geógrafo Vanderlei Dias Soares, técnico em Planejamento e Gestão Urbana da Administração Regional de Planaltina.
O servidor público estudou o desenvolvimento da cidade e usou o tema no trabalho de conclusão do curso de graduação na Universidade Estadual de Goiás. Ele aprofundou as origens das ocupações humanas mais recentes da região administrativa. ;A cidade cresceu a partir de loteamentos irregulares e das campanhas de erradicação das invasões. A população em geral acabou bastante prejudicada.;
Por conta da falta de planejamento, as gangues de Planaltina se organizaram em torno do tráfico de drogas, a exemplo de várias outras no DF. Para o sociólogo e especialista em segurança Antônio Testa, as galeras da cidade são a consequência das diferenças sociais que vieram com a criação de Brasília. ;Planaltina era cidade dormitório. Com o tempo, a prostituição deu lugar ao tráfico de drogas. As gangues se tornaram profissionais e agora disputam territórios por reserva de mercado. Antes, brigavam por questões de valores e de identidade;, explicou o professor da Universidade de Brasília (UnB).
Segundo Testa, Planaltina viveu por pouco tempo o caráter passional e idealista dos grupos de jovens do DF que se reuniam ao redor do consumo de drogas, das brigas, dos pegas de carros e de pequenos delitos durante os anos 1970 (leia arte). ;Entre os anos 1990 e 2000, esses grupos perderam o lado romântico e começaram a ficar mais agressivos. Apesar de sempre vinculados à violência, acabaram se tornando profissionais no crime;, afirmou.
Políticas públicas
A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e a Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana (Ritla) lançaram em junho deste ano a primeira pesquisa científica realizada na América Latina sobre gangues no Distrito Federal. O resultado, divulgado no livro Gangues, gênero e juventude: donas de rocha e sujeitos cabulosos, abordou as condições sociais e os conflitos vividos por jovens envolvidos nesses grupos. O estudo se baseou em entrevistas feitas com 73 participantes de 13 galeras da capital federal. As conversas ocorreram entre 2007 e 2010 com garotos e garotas do DF.
O trabalho serviu para detalhar o cotidiano das gangues no DF. Os pesquisadores identificaram brigas, pichações, crimes, acertos de contas, farras, desavenças virtuais e o papel das meninas nesses grupos. Elas, por exemplo, enfrentam resistência e desconfiança para comprovar coragem e lealdade diante dos meninos. Representantes da Subsecretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente e da Central Única das Favelas (Cufa), parceiros na publicação, defenderam o investimento em políticas públicas e na criação de espaços e opções de lazer para a juventude.