postado em 24/12/2010 08:15
Marcela não conhece Papai Noel. Mas sabe bem o que é um milagre de Natal. Tem só dois anos e oito meses e já viveu o suficiente para ter histórias a contar. Em 24 de dezembro de 2009, a menina renasceu, depois de receber um novo coração. A cirurgia foi realizada três dias antes no Instituto de Cardiologia (IC-DF), mas somente nessa data Marcela teve condições de ser apresentada aos jornais. O transplante foi o primeiro do tipo a ser feito em uma criança no Distrito Federal.Hoje, exatamente um ano depois, Marcela leva uma vida saudável, porém com alguns sustos e demonstrações de força. Nesses 12 meses, ela teve catapora ; durante um surto da doença na cidade ; e várias infecções. Isso depois de sofrer um Acidente Vascular Cerebral (AVC), no dia em que saiu da internação rumo à casa, em Planaltina (DF). Um coágulo sanguíneo estava no coração e chegou ao cérebro.
Os movimentos do lado esquerdo do corpo ficaram prejudicados. Mas quem olha com pouca atenção nem percebe. A própria Marcela parece nem se importar. É muito pequena para entender a gravidade de tudo que passou. Corre por todos os lados. Seus olhos não se prendem ao mesmo lugar por muito tempo. Vive em uma procura intensa pelo novo. E tudo é inédito. Os carros na rua, o painel do hospital ; que ela precisa visitar uma vez por semana ;, as cores e as formigas nas árvores. Até a comida no prato é brinquedo para Marcela.
É como se a pequena celebrasse a vida o tempo todo, sem querer perder nenhum minuto, mesmo sem saber que esteve tão perto da morte. Ela nasceu saudável, em abril de 2008. Mas uma pneumonia malcurada evoluiu para um sério problema no coração: uma miocardiopatia dilatada, ou seja, o órgão dilatou e perdeu a capacidade de contrair.
A doença provocou insuficiência respiratória. Em seguida, veio o enfraquecimento do músculo do coração. Marcela teve de ficar na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) durante sete meses. Nenhum tratamento surtia efeito. Os momentos de agonia pareciam eternos não só para a criança, mas também para a mãe dela, Karem Pires, 19 anos. ;Os médicos tentaram muita coisa. No final, disseram que, se ela não fizesse o transplante, não sobreviveria;, lembrou Karem.
Força
Durante muito tempo, o coração de Marcela não bateu sozinho. Era preciso um remédio liberado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), para manter a pulsação. ;O medicamento não podia ser usado fora do hospital. Sem o transplante, a Marcela morreria ou ficaria a vida toda naquele quarto;, conta a mãe.
O adeus de alguns pode ser o começo de outros. Às vésperas do Natal, Marcela conseguiu um coração novo. O órgão veio de uma menina de 3 anos, com tamanho e tipo sanguíneo compatíveis com os dela. ;Na hora, eu queria confortar a outra família. Eles perderam a filha deles para me dar a minha;, lembrou Karem. Além do DF, só três cidades no Brasil faziam transplantes de coração em crianças: São Paulo, Porto Alegre e Fortaleza.
A cirurgia demorou cinco horas e contou com uma equipe de 12 profissionais. As primeiras palavras de Marcela depois da operação foram para pedir água à mãe. O risco de rejeição no primeiro ano após o transplante ainda é alto. A partir de 2011, as visitas de Marcela ao hospital podem ser cada vez menos frequentes, mas o acompanhamento sempre será necessário.
Daquela época, ela guarda a cicatriz no peito. ;Eu nunca desisti. No tempo de internação, conheci muitas outras mães. Os filhos delas estavam na mesma situação. Eu era a mais animada, dava força para todo mundo. No fundo, eu sentia que ia dar tudo certo. Quem tem Deus tem tudo;, afirmou Karem.
Marcela se parece com a mãe, é persistente. Karem estava grávida de Mariele, a segunda filha, quando Marcela foi internada. Mariele nasceu e Karem não podia cuidar dela. Precisava ficar no hospital com a filha mais velha. ;Foi a coisa mais difícil. Agora que estou curtindo a Mariele;, comentou.
Karem ensina uma lição: mesmo quando há poucas chances de recuperação, uma mãe nunca deve desistir do filho. As duas usam frequentemente camisetas que ganharam no hospital, estampadas com uma mensagem: ;Doe órgãos, salve vidas;. O pedido é uma forma de manter acesa a esperança de vida para muita gente. ;Só quem passa pelo que eu passei sabe como é. Antes, eu não pensava se seria doadora ou não. Hoje, vejo a importância de falar sobre isso;, afirmou Karem.
Dádiva
Em 2009, Marcela passou a noite de 24 de dezembro para 25 no hospital. Papai Noel não veio. Mas tudo bem. Marcela nem sabe quem ele é. ;Ela estava muito fraquinha. Não conheceu ele (o Papai Noel). Até hoje não levei ela pra ver;, explicou Karem. Este ano, Marcela vai passar a data em casa, com a mãe, a avó e a irmã. Pode ser que não ganhe uma boneca, seu brinquedo preferido. ;A situação está difícil;, justificou a mãe. Marcela ainda é inocente para reclamar. E, mesmo se pudesse, talvez não se queixasse. Tem motivos de sobra para estar satisfeita. Afinal, ganhou a vida de presente, no último Natal.
As chances
O transplante cardíaco em crianças costuma ter 85% de sobrevida em 10 anos ; ou seja, ao fim de uma década, 85% das crianças transplantadas terão boa qualidade de vida. O resultado depende de como serão as condições de vida do paciente. Eles devem evitar, por exemplo, o contato com animais e com pessoas doentes.