Em meio à rotina acelerada das grandes cidades, há pessoas que contrariam a maré e encontram tempo para se doar por completo. Esquecem-se um pouco (ou muito) de si e fazem uma pausa nobre para pensar no outro. Nesta época do ano, é comum encontrar quem queira presentear aqueles que passam por dificuldades, pois o espírito natalino desperta sinceras intenções. Mas existem homens e mulheres que, durante os 12 meses, cumprem uma missão: colaborar para a construção de um mundo menos desigual, sem cobrar nada em troca, por meio do voluntariado. O Correio Braziliense conta hoje seis histórias de gente que se encaixa nesse perfil.
Ser voluntário é se entregar. Mais do que doar tempo, dinheiro e boa vontade, é oferecer a um desconhecido o que se tem de melhor. Pode ser o conhecimento, como transmite o professor Emílio Moriya, voluntário responsável por um projeto gratuito de alfabetização de jovens e adultos.
Pode ser também a habilidade de transformar a própria dor em solidariedade, como faz há 15 anos a presidente da Associação Brasileira de Assistência às Famílias de Crianças Portadoras de Câncer e Hemopatias (Abrace), Ilda Peliz. Ou resgatar sonhos, desenvolvendo trabalhos com usuários de drogas e pessoas que vivem em meio à miséria, como no caso do pastor Luciano Gonzaga, policial militar licenciado que atua em nove locais do Distrito Federal.
Há quem trabalhe, ainda, por toda a sociedade, como a organização não governamental Rodas da Paz. A entidade promove regularmente campanhas em nome da paz no trânsito. E mais: todo fim de ano, o presidente da ONG, Ronaldo Alves, recupera e doa cerca de 400 bicicletas para crianças carentes.
A servidora pública Débora da Silva França e a aposentada Marli de Fátima Barbosa de Araújo se incluem entre esses voluntários da esperança. Elas dedicam boa parte de suas vidas ; e de seus recursos financeiros ; à capacitação de mulheres carentes por meio de oficinas de atividade manuais. São exemplos para, neste Natal, inspirar cada brasiliense, em nome de uma Brasília melhor.
De copos de sopa a cestas básicas
Ele realiza ações de caridade em nove pontos do Distrito Federal durante todo o ano e pretende ampliar a atuação para 50 locais em 2011. Policial militar licenciado, o pastor Luciano Gonzaga (na foto, de barba) é presença recebida com festa nas comunidades onde atua. Entre os trabalhos desenvolvidos há a distribuição de cestas básicas, recuperação de dependentes químicos e projetos de alfabetização e evangelização. ;A gente sente muita falta quando o pastor não vem, não só de toda a ajuda, mas da alegria, da atenção, da felicidade que ele traz;, afirma Francisca Barbosa, 68 anos, catadora de lixo e uma das beneficiadas com as cestas básicas doadas pelo pastor na última quarta-feira, em um assentamento em Taguatinga Sul.
Apenas às sextas-feiras, 600 copos de sopa são distribuídos a moradores de rua em Ceilândia. A ação se repete em Taguatinga e na Rodoviária do Plano Piloto. ;Quando era policial, percebi que estourar bocas de fumo, prender, reprimir, nada disso funcionava. O trabalho voluntário foi a forma que encontrei de mudar as coisas;, explica Luciano, integrante da Comunidade Profética Ágape. No mesmo assentamento que visitou na última semana, o pastor promove um trabalho de alfabetização de crianças e de jovens, bem como ajuda os desempregados a se posicionarem no mercado de trabalho.
Quem consegue um emprego aprende a administrar o dinheiro e, assim, as famílias vão progredindo. Luciano também faz doações de comida para centros de reabilitação de viciados em drogas. Em troca, ele pede vagas nas clínicas para internar dependentes. Em oito anos de trabalho, ele contabiliza já ter retirado 500 deles da rua. Desses, apenas 30 se mantiveram longe do vício. Aqueles que vencem a dependência passam a trabalhar como voluntários no grupo do pastor. ;Queremos mostrar para essas pessoas como elas podem conquistar outras coisas na vida, como voltar a sonhar e a ter fé.;
Trabalho e cidadania para mães e filhos
;Fora da caridade, não há salvação.; Esse princípio espírita move a servidora pública Débora da Silva França (na foto, de blusa azul), 48 anos. Há 22, quando a Estrutural ;era só mato e poeira;, ela e um grupo de voluntários do Centro Espírita André Luiz levaram para a região carente oficinas de capacitação e sopa para catadores de materiais recicláveis que trabalhavam no Lixão. ;Percebemos que muitas pessoas iam procurar ajuda no centro, que fica no Guará, então resolvemos nos aproximar da comunidade;, conta. Sem apoio do governo, a servidora e seus colegas já ajudaram a capacitar cerca de 3,5 mil mulheres.
Ao longo de duas décadas, o trabalho se consolidou e o grupo fundou na cidade a Sociedade Assistencial Francisco de Assis (Safra), presidida por Débora. Três vezes por semana, a moradora do Guará vai à Estrutural realizar as atividades. Segunda-feira é dia de distribuir sopa; terça, de levar mensagens cristãs à comunidade; e sábado, de oferecer cursos. Débora já foi assaltada duas vezes durante essas visitas ; nada que a faça desistir. ;Se a gente quer um mundo melhor, não pode só reclamar. É preciso fazer alguma coisa;, ensina.
As ações são desenvolvidas em três galpões construídos por voluntários e com o salário da própria servidora. O terreno é emprestado de uma moradora da cidade. ;A nossa prioridade é ensinar uma atividade para que as mães possam ganhar dinheiro e cuidar de seus filhos;, afirma. Nas oficinas, as mulheres da Estrutural aprendem a costurar, a fazer crochê, biscuit, bordado e customizar peças. Enquanto isso, os filhos recebem aulas de moral cristã e de cidadania.
Débora conta com a ajuda de profissionais, como professores e psicólogos. ;É difícil encontrar pessoas que estão dispostas a pagar para trabalhar. No serviço voluntário, é preciso despender, além do seu tempo, dinheiro com gasolina e transporte, por exemplo.;
Triunfo da luta pela vida
Quando tomou a frente da administração da Abrace (que atende os pequenos pacientes com câncer), Ilda Peliz (ao centro na foto), hoje aos 60 anos, passava pelo momento mais difícil na vida de uma mãe: a perda de um filho. A pequena Rebeca mal começou a viver. Com 1 ano e meio, em outubro de 1995, sucumbiu a um câncer no cérebro.
Em princípio, o tumor era benigno e se instalou no sistema nervoso central. Mas as diversas tentativas de inserir cápsulas radiotivas para destruí-lo foram em vão. Assim, o tumor se tornou maligno. Durante todo esse processo, Ilda e Rebeca praticamente moraram no Hospital de Base. A mãe de classe média moradora da Asa Norte, que trabalhava como bancária conheceu a realidade de outras mães menos privilegiadas.
À época, não havia tratamento na rede particular. ;Vi de perto a precariedade do serviço público de saúde. Faltavam remédios, material e até água armazenada de forma adequada para famílias e pacientes. Muitas vezes, era eu quem tinha de comprar o quimioterápico, não só para Rebeca. Atravessava a rua, ia à farmácia e voltava com as caixas;, lembra a mãe.
Ilda adotou a postura de lutar pelos direitos das crianças e das famílias. Por isso, ao fim do tratamento de Rebeca, Ilda foi convidada a presidir a Abrace, por indicação de médicos do HBDF. Ao longo de 15 anos, Ilda revolucionou a associação.
A instituição oferece transporte aéreo, hospedagem na Casa de Apoio a quem é de fora de Brasília, remédios, acesso aos hospitais e muito mais, para seus assistidos. Em 2011, a Abrace vai inaugurar o próprio hospital, especializado em câncer infantil. A obra, no Setor de Áreas Isoladas Norte, custou R$ 15 milhões e tem 7 mil metros quadrados. O dinheiro veio de doações, segundo Ilda. Serão necessários outros R$ 15 milhões para equipá-lo. É a grande vitória de Ilda: o triunfo da luta pela vida.
Ensinando a escrever sonhos
A sala de aula funciona em um cômodo emprestado por uma igreja, na 313/314 Norte. No espaço pequeno, todo um universo de significados e sentidos nasce como milagre, diante dos olhos dos alunos. Dezenas deles são alfabetizados todos os anos pelo professor Emílio Moriya (foto), 57 anos, morador da Asa Norte. Desde 2003, o paulista descendente de japoneses se dedica a ministrar lições àqueles que não tiveram a oportunidade de, na infância, aprender a ler e a escrever.
Bancário, Emílio começou a ajudar quando a empresa pública onde trabalhava montou um projeto de responsabilidade social em alfabetização. Ele coordena atualmente um programa batizado como Alfa. As aulas ocorrem duas ou três vezes por semana, à noite. ;Escolhi ser voluntário porque a educação, se for bem conduzida, transforma qualquer pessoa. A motivação para alfabetizar jovens e adultos surge quando você vê as pessoas menos favorecidas sendo ignoradas pela sociedade e pelos governos;, diz o professor, diplomado em física.
Hoje, com um colega, ele ministra aulas de português, matemática, geografia e história. ;Falamos de tudo um pouco, sempre levando em consideração a história de vida de cada um dos alunos. Seguimos o método Paulo Freire;, afirma Emílio, que se lembra da primeira sala em que ensinou. As cadeiras e as mesas eram adequadas para crianças de até 6 anos. Os adultos se acomodavam como podiam. Qualquer sacríficio é válido.
Prova disso é a empregada doméstica Rosa Maria Ferreira, 30 anos. A maranhense aprendeu a ler e a escrever há dois anos, graças a Emílio. ;Meus pais trabalham na roça e eu nunca tive chance de estudar. Foi uma emoção muito grande escrever meu próprio nome;, conta Rosa. Todo fim de ano, a aluna manda cartas com desejos de boas-festas ao professor. Uma maneira simples de demonstrar gratidão.
O inestimável valor da autoestima
Em 2000, a aposentada Marli de Fátima Barbosa de Araújo (em pé na foto), 56 anos, recebeu um diagnóstico que mudaria não só a sua vida, mas também a de outras mulheres. A então servidora da Secretária de Saúde do DF descobriu que tinha hanseníase . ;Quando iniciei o tratamento, percebi que a maioria das pacientes não tinha dinheiro nem para pegar um ônibus. Por causa da doença, muitas perdiam, além da autoestima, o emprego.; Marli decidiu fazer algo para mudar essa realidade. Fundou em 2003 uma associação na Vila Vicentina, em Planatina, de oficinas de artesanato. Mais do que renda, as mulheres assistidas reencontraram no trabalho a vontade de seguir em frente.
Nos cursos, as pacientes aprendem a fazer bijuterias, tapetes e flores, entre outros objetos artesanais. ;Uma mulher recuperou os movimento das mãos fazendo biscuit;, diz Marli. A maior parte do dinheiro das vendas dos produtos se destina às próprias alunas ; atualmente, 53 estão cadastradas no projeto. Uma pequena porcentagem fica na associação e é usada para comprar mais matéria-prima.
A moradora de Planaltina Maria das Graças Nascimento, 57 anos, sempre ganhou a vida com artesanato. Mas, depois que ficou doente em 1995, nunca mais conseguiu emprego. Na associação presidida por Marli, ela retomou a profissão e recuperou a autoestima. ;Com a hanseníase, perdi a força dos braços e das pernas. No grupo, encontrei o incentivo que eu precisava para sair da depressão e voltar a produzir. Além disso, encontrei pessoas para compartilhar os problemas;, desabafa.
Marli tira dinheiro do próprio bolso para manter a associação. ;Como estou aposentada, poderia estar viajando ou em qualquer outro lugar. Decidi fazer isso porque elas precisam. Quando a gente faz um trabalho voluntário pensa que está ajudando só os outros, mas, na verdade, está ajudando a si mesmo.;
Endemia
A hanseníase ; que já foi conhecida como lepra ; é uma doença infecciosa causada pelo bacilo Mycobacterium leprae, que provoca severos danos aos nervos e à pele. O nome hanseníase se deve ao descobridor do micro-organismo causador da doença, Gerhard Hansen. Ela é endêmica em certos países tropicais, em particular na Ásia. O Brasil inclui-se entre os países de alta endemicidade no mundo.
Bicicletas para quem precisa
Ver as 320 bicicletas prontas, todas consertadas, lavadas e com os devidos selos de doação. Eis o momento mais marcante a cada fim de ano do biólogo Ronaldo Alves (foto abaixo), presidente da organização não governamental (ONG) Rodas da Paz. Há oito anos, ele coleta e recicla bicicletas para distribuir nesta época do ano. O trabalho demanda esforço físico tanto de Ronaldo como dos outros 25 voluntários. Após as peças serem recolhidas, é feita uma triagem do material. As bicicletas aproveitáveis são recuperadas por mecânicos contratados com dinheiro de doações. Por fim, os voluntários lavam tudo, fazem os últimos ajustes e deixam os presentes com cara de novos. ;Na hora da entrega, todo mundo chora, não tem jeito. É bom saber que as bicicletas serão essenciais na vida dessas crianças no próximo ano; para muitas, será o transporte para a escola, por exemplo. Fazemos uma boa ação e levamos um pouco do perfil da nossa entidade, que é justamente fazer das bicicletas ferramentas de cidadania;, considera Ronaldo.
Das doações, 102 bicicletas foram entregues à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos para atender os desejos das crianças que enviaram cartinhas de Natal. As demais serão doadas no início deste ano para escolas rurais no DF. Entre as doações, há bicicletas completas, esportivas e outras pequeninas, com motivos de personagens infantis. ;Tem para todo mundo. No caso das cartinhas, selecionamos de acordo com a idade e o perfil;, explica Ronaldo.
Em 2009, a entidade distribuiu 419 bicicletas. Há 20 anos na capital, Ronaldo acredita que trabalhos como esse possibilitam dias mais felizes a várias comunidades e não apenas aos presenteados. ;Certamente, essas bicicletas vão passar de uma pessoa para outra, beneficiando várias crianças e também adultos. Com isso, o dinheiro que uma família juntaria para comprar uma bicicleta pode ser usado para abastecer o armário com comida;, conclui.