postado em 11/01/2011 07:50
Chama-se de normal tudo aquilo que é comum, natural. Catiene é natural. Tem a fala desinibida, diz o que tem vontade de dizer. Ela gosta de si mesma assim, da forma como veio ao mundo. Mas Catiene não é comum. É especial. E muitas vezes não foi (e ainda não é) considerada normal sob o olhar apressado dos outros. O motivo: a deficiência visual. A menina passa longe de ser apenas mais uma. ;Tem tanta vontade de viver que enganou até a morte;, dizem os familiares da moça.Catiene Santos de Jesus tem 26 anos. Não enxerga desde pequena, mas nasceu com visão perfeita. Quando era um bebê, aos três meses, a menina foi dada como morta depois de sofrer um acidente vascular cerebral. A mãe conformou-se. ;Que se há de fazer?;, dizia aos parentes.
O pai de Catiene fugiu com a filha desacordada nos braços para o meio do mato. Queria evitar o enterro. Depois de 24 horas, Catiene reagiu. Abriu os olhos. O lado esquerdo do corpo da criança, porém, apresentava deformações. A boca parecia torta. A menina jamais voltou a enxergar.
O longo desmaio foi consequência do derrame. À época, no interior da Bahia, onde Catiene vivia com a família, não havia médicos. Se alguém fechava os olhos e demorava demais para abri-los, logo deduzia-se que a pessoa havia morrido.
Catiene é assim, cheia de surpresas. Há cinco anos, veio para Brasília. Queria estudar, ser promotora de Justiça. Criada por uma irmã, Edna Santos de Jesus, 29 anos, Catiene mudou-se para a capital do país a convite da mãe, que já morava por aqui. Passou a dividir com outros quatro familiares uma pequena casa na Estrutural. A jovem não tinha documentos como Carteira de Identidade, Certidão de Nascimento ou CPF. Por isso, nenhuma escola queria aceitá-la.
A moça, mais uma vez, conformou-se com o novo revés e deixou para trás os planos com os quais sonhara no caminho da Bahia até aqui. ;Me acostumei a ouvir que eu não era capaz;, lembra. Um sobrinho de Catiene, Eduardo, 13 anos, estudava no Centro de Ensino Fundamental 4 do Guará (CEF 4), uma escola inclusiva, que acolhe portadores de várias necessidades especiais.
Certo dia, no colégio, conheceu um projeto idealizado por duas professoras do colégio: o Quebrando Barreiras. A proposta de Idalene Aparecida André e Eliane Lopes é levar para além dos muros da escola a bandeira da inclusão, deslocando os alunos especiais para contarem suas histórias e mostrarem seus talentos. ;Meu sobrinho me disse: ;Tia, lá na escola eles ensinam os cegos. Tem lugar para você;. Ele me trouxe a luz;, lembra-se Cati, como ela é conhecida no CEF 4. Hoje, a jovem está na 7; série.
O Quebrando Barreiras já visitou igrejas, outras escolas, faculdades e até locais inusitados, como escritórios de advocacia. ;Nós vamos a qualquer lugar para promover a inclusão. As pessoas, às vezes, não acreditam que a inclusão é possível. Queremos mostrar exemplos de pessoas que levam uma vida normal, com sonhos e sucesso;, explica Idalene.
Mudança
Catiene tornou-se uma pessoa diferente ao conhecer a escola. Além do projeto, o colégio oferece estrutura adequada para atender alunos como ela e é referência em educação de deficientes visuais. Tem máquinas de escrever em braille ; um equipamento caro e raro na rede pública de ensino ; e computadores adaptados.
;Aqui, aprendi que meus sonhos podem ser realidade. Quero ser alguém que não tem medo de se tornar sempre melhor. De enfrentar a vida, os preconceitos. Minha tristeza se transformou em alegria;, diz.
O exemplo de Catiene não é único no CEF 4. Pedro Henrique Cruz Araújo, 15 anos, aluno da 8; série, também tem muito o que ensinar. Há dois anos, ele perdeu totalmente a capacidade de enxergar. Antes, em decorrência de descolamento de retina, tinha baixa visão.
Pedro acorda, todos os dias, às 4h. Uma hora depois, sai de casa, no Riacho Fundo, rumo ao colégio. A rotina é cansativa, mas vale a pena. Pedro se esforça por um objetivo: quer ser advogado. ;Vou lutar pelos direitos dos outros deficientes;, justifica. O adolescente quer viver em um mundo mais plural, em que as calçadas, por exemplo, sejam feitas para todos circularem.
Batom e vaga na UnB
Histórias parecidas com as de Pedro e Catiene são vistas em várias outras escolas do DF. Os colégios estão cheios de gente especial. No Centro de Ensino Médio Paulo Freire, na 610 Norte, onde há 31 estudantes especiais em turmas inclusivas, Jéssika Kely Oliveira, 16 anos, aluna do 1; ano, é a única cadeirante.
A menina conta com a ajuda de uma monitora, Ana Fontes, para ajudá-la a passear pelos corredores do colégio e fazer as lições em sala de aula. Jéssika é vaidosa. Está sempre com cabelo penteado e com os lábios coloridos de batom. Quando a maquiagem falha, é Ana quem retoca o batom de Jéssika.
Ela recebe auxílio também da professora Christine Teixeira Santos. ;A inclusão nos melhora como seres humanos. É uma questão importante para todos;, acredita. Antes de se adaptar ao colégio atual, Jéssika passou por outras cinco escolas públicas. Nelas, não havia profissionais capacitados para o atendimento especial. ;Eu me sentia deslocada;, resume.
O dia de Jéssika nunca é fácil. A adolescente sai de casa, na Candangolândia, cedo, acompanhada da mãe, Maria Auxiliadora, para pegar o ônibus rumo à Asa Norte. ;Quase nunca os ônibus têm elevador. Os motoristas e cobradores sempre reclamam de carregá-la. Já me mandaram contratar alguém, deixar de abuso. Não é mole;, conta a mãe.
Ainda assim, Jéssika não desiste porque acredita num futuro cheio de dignidade. Fez inscrição no vestibular da Universidade de Brasília (UnB), escolheu direito. Jéssika, Catiene e Pedro têm muito além das limitações físicas em comum. Compartilham a luta para protagonizar a própria história.
VEJA AMANHÃ: Projeto criado por professores da Escola Classe 1 de Brazlândia ensina a Língua Brasileira de Sinais (Libras) para todos os alunos do colégio, inclusive aqueles que podem ouvir. A intenção é promover a verdadeira inclusão dos estudantes portadores de deficiência auditiva.