Naira Trindade
postado em 15/01/2011 08:45
Aos 39 anos, a dona de casa Fátima* está mais viva do que nunca. Casada pela segunda vez, ela vive momentos felizes ao lado do novo marido e dos dois filhos de 13 e 7 anos. Desconhece ter inimigos ou problemas financeiros. Católica praticante, leva uma vida simples, sem ostentação. Mesmo com a saúde em dia, Fátima* foi dada como morta em um processo aberto em 4 de outubro do ano passado pela Secretaria de Educação do Distrito Federal.A pensão que recebia há sete anos do primeiro marido, já falecido, saiu misteriosamente de seu nome e passou de vitalícia a temporária, sendo transferida para o filho caçula. O mais curioso ainda estava por vir: a dona de casa foi acionada pela Secretaria de Educação, que lhe determinou ressarcir o Governo do Distrito Federal pelo pagamento de pensões recebidas ;indevidamente; após sua morte, sob pena de ter o processo encaminhado à Subsecretaria da Receita para procedimento de inscrição de dívida ativa.
Mesmo considerada morta, Fátima* recebeu, em casa, essa carta de cobrança da Secretaria de Educação, em 4 de novembro do ano passado. Estranhou o assunto. Nunca tivera problemas com a pensão deixada pelo marido. Procurou o órgão para se inteirar do que tratava. ;Mas já era fim de ano e a funcionária disse que deveria se tratar de algum depósito irregular. Ela relatou ter sofrido problema parecido, disse para eu não me preocupar e voltar em outro momento.;
No fim de dezembro, a moradora de Taguatinga voltou a procurar a Secretaria de Educação. Foi quando descobriu que estava ;morta;. Uma certidão colorida, com timbre da República Federativa do Brasil, cabeçalho do Cartório do 2; Ofício de Registro Civil e Casamentos, Títulos e Documentos e Pessoas Jurídicas de Brasília, trazia a informação de que Fátima* não resistira a insuficiência respiratória provocada por pneumonia.
A ;morte; dela teria ocorrido no Hospital Daher, em 4 de junho de 2010, um dia antes de Fátima* completar 39 anos. O atestado de óbito trazia um diagnóstico assinado pelo médico Guilherme Antônio Veloso Coracy, com o CRM verdadeiro dele. Descobriu-se que essa certidão é falsa, assim como um pequeno detalhe no sobrenome do médico, também: é Coaracy. O profissional, especializado em urologia e terapia intensiva, existe de verdade, trabalha naquele hospital e atende na Asa Sul. Além de desconhecer a paciente, afirma não ter ideia de como seu nome foi parar em um documento desse teor. ;Assim que soube, fiz um boletim de ocorrência por ter meu nome envolvido na fraude;, conta. A mesma precaução tomou o Hospital Daher, por meio de uma nota oficial: ;O Hospital Daher lamenta que seu nome tenha sido utilizado de forma indevida em uma declaração com veracidade não comprovada pelo cartório.;
Falsificações
Embora não tenha sido elaborada oficialmente em nenhum cartório, essa certidão traz informações como livro de registro, folha, termo e data em que foi lavrada. Os dados foram extraídos de atestados originais de duas pessoas que morreram, respectivamente em 2004, em Santa Maria, e em 2006, em Planaltina. O falso documento traz ainda um endereço do Guará, dos pais da pensionista, e os nomes dos dois filhos dela. ;Tudo nela mostra que quem fez me conhecia muito bem e tinha informações pessoais;, conclui a falsa morta. Ela investiga suspeitos e estuda processar quem supostamente quer prejudicá-la.
No carimbo do suposto escrevente do cartório, o sobrenome é diferente do verdadeiro. ;O funcionário do cartório se chama Antônio Fernandes Quirino;, confirma a telefonista do 2; Ofício. O nome carimbado trazia o sobrenome Queiroz. Além disso, o documento não possuía o selo de segurança utilizado em cartórios para validar os documentos verídicos.
Mas nenhuma dessas irregularidades foi suficiente para manter Fátima* ;viva;. Apesar de todas as fraudes, a pensionista teve aberto um processo pela Secretaria de Educação. Perdeu os direitos vitalícios. A pensão expira quando o filho completar 21 anos. Do mesmo órgão do governo, na semana passada, foi emitida uma publicação equivocada nomeando como diretora da Escola Classe Córrego do Arrozal, em Sobradinho, uma professora morta (de verdade).
Correios
Procurada, a Secretaria de Educação, por meio da assessoria de imprensa, alegou que os funcionários receberam a certidão por carta enviada pelos Correios e que, como se trata de documento ;registrado; em cartório local, encaminharam-no ao órgão responsável pelo cancelamento do benefício. Segundo a assessoria, o documento só é checado quando a certidão vem de outros estados.
O procedimento, no entanto, é contestado pelo novo secretário de Administração do Governo do Distrito Federal, Denilson Bento da Costa. Perplexo com a falha do órgão, ele alega que o trâmite correto é conferir a veracidade de qualquer documentação, principalmente quando chega pelos Correios. ;Não é praxe recebermos documentos assim, quanto mais cancelarmos um benefício sem checar antes. É preciso carimbo de recebido, com assinatura do servidor. O procedimento foi feito de forma errada;, analisou. ;Será aberta uma sindicância para investigar o que houve de fato. Cabe punição do responsável, como suspensão ou até exoneração do cargo.;
Confusa, Fátima* procurou a Defensoria Pública do Distrito Federal. ;O Estado foi negligente ao aceitar um documento falso e, sem adotar cuidados mínimos, cancelar a pensão. Ainda que não se possa identificar o responsável pela omissão, o DF responde de forma objetiva, independentemente de demostrar da culpa de algum servidor específico. É o que se chama de culpa anônima;, esclarece o defensor André Moura.
Agora, Fátima* luta para reverter a situação e ter seus benefícios de volta. Uma certidão negativa de óbito, essa sim, registrada no Cartório do 2; Ofício da Asa Sul, garante: ela está viva, com saúde e em plenas condições, incluindo gozo das faculdades mentais, de lutar por seus direitos. Isso inclui enquadrar nas devidas punições os responsáveis pela adulteração do documento.
*A personagem preferiu não ter o nome revelado.
Segurança
Além do selo de segurança já utilizado, a Casa da Moeda do Brasil, em parceria com a Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e com o Ministério da Justiça, padronizou neste mês certidões de nascimento, casamento e óbito no país. Agora, os documentos são confeccionados em papel especial, com marca d;água e microletras. A impressão será feita pelo mesmo processo das cédulas de dinheiro, que aumenta a segurança contra falsificações.
MEMÓRIA
Falhas recorrentes
No início desta semana, a nova secretária de Educação, Regina Vinhaes, nomeou a professora Anemaura Alves da Costa para a direção da Escola Classe Córrego do Arrozal, em Sobradinho. Não fosse o fato de Anemaura ter morrido em setembro do ano passado, estaria tudo correto. O caso ganhou as páginas dos principais jornais e atrasou a publicação dos nomes dos profissionais que vão assumir as demais escolas. Além disso, a listagem publicada no Diário Oficial do DF na segunda-feira trouxe nomes de professores e diretores da rede pública de ensino errados. Um dos indicados acabou nomeado duas vezes: a primeira para administrador regional, em 1; de janeiro, e a outra, erroneamente, para diretor de uma escola.
Em novembro de 2010, o Correio divulgou com exclusividade o caso de Maria do Amparo Teixeira, 52 anos, tida como morta pelo Hospital Regional da Asa Norte (Hran) após se submeter a uma cirurgia de vesícula. A piauiense, que saiu com vida dessa operação e devidamente recuperada, não conseguia provar que estava de pé e nem tinha autorização para se submeter a novos procedimentos cirúrgicos. No dia seguinte à publicação da reportagem, a Secretaria de Saúde ;justificou; essas determinações ; às quais a lógica não resiste ; reconhecendo apenas que houve ;um erro de digitação no prontuário;.