Helena Mader
postado em 16/01/2011 08:00
Homens simples, carregando os pertences amarrados em sacos de pano ou em malas de madeira, chegam de todos os cantos do país. Vêm a pé, de ônibus, de caminhão ou de carroça. Alguns poucos, de avião. Após o desembarque, instalam-se em casebres de madeira, onde descansam e se divertem nos intervalos do trabalho árduo. Ao lado deles, funcionários alinhados carregam pranchetas e dão as diretrizes para o cumprimento da missão. Afinal, há muito a fazer, em pouquíssimo tempo. Esses operários, arquitetos e engenheiros têm à frente o grandioso desafio de construir a nova capital do país. O tamanho do entusiasmo pode ser medido em cada gota de suor e em cada sorriso dos pioneiros que ergueram uma cidade em meio ao cerrado. As histórias da construção da capital, com seus personagens célebres, a maioria dos brasilienses conhece. Mas pouquíssimos já viram detalhes de como os traços de Lucio Costa se transformaram na famosa cidade sem esquinas, repleta de monumentos e de rostos das mais variadas origens. Pela primeira vez desde que a capital foi inaugurada, uma publicação reúne fotos de 13 fontes diferentes, entre arquivos públicos, acervos particulares e instituições culturais do país. O livro Arquivo Brasília, lançado pela editora Cosac Naify, é resultado de um trabalho longo e minucioso do casal Michael Wesely e Lina Kim ; ele alemão, ela brasileira. Os pesquisadores realizaram um garimpo em meio a 100 mil imagens para selecionar 1.410 fotografias, que ilustram a publicação. Muitas delas são raras e inéditas. Mas não há legendas identificando os locais e as pessoas retratadas nas imagens.
O livro mostra rostos conhecidos de protagonistas da construção de Brasília, como Lucio Costa, Oscar Niemeyer e o presidente Juscelino Kubitschek, assim como milhares de anônimos que largaram tudo para ajudar a transferir a capital para o centro do país. Nas fotos, vemos crianças brincando nos canteiros de obras, mulheres que lavam as roupas nos assentamentos cheios de poeira e operários tocando sanfona para aliviar o cansaço e distrair a mente.
As primeiras imagens de Arquivo Brasília apresentam uma espécie de pré-história da cidade. São fotos das primeiras ocupações do cerrado e das comissões que visitaram a região a partir de 1956, para acelerar a transferência da capital. A partir daquele ano, JK começou a divulgar seu projeto entre jornalistas e personalidades políticas do mundo todo. Cada visita ilustre aos canteiros de obras, como a do recém-vitorioso Fidel Castro, era devidamente registrada e divulgada. E esses documentos históricos estão lá no livro de Lina e Michael.
Aventura
Mas as fotografias mais marcantes entre as selecionadas por Lina e Michael são os registros da chegada dos pioneiros ao Planalto Central. Nos olhares captados pelas dezenas de fotógrafos que registraram o dia a dia da construção, as expectativas se misturam ao sentimento de aventura de participar dessa epopeia. Em uma das fotos, cedida pelo Arquivo Público de Brasília, nove migrantes posam de uniformes claros, repletos de barro, com suas respectivas malas. Eles parecem um pouco desconfiados, mas trazem orgulho nos olhos. Outro trabalhador se exibe bem vestido ao lado de uma máquina de misturar cimento. Um registro que deve ter viajado até alguma cidade longínqua, para ser mostrado aos familiares que ficaram para trás.
O livro Arquivo Brasília tem detalhes da primeira missa, realizada em maio de 1957. Cerca de 15 mil pessoas participaram da cerimônia. Um grupo de freiras sorridentes, carregando cestas de piquenique, foi flagrado por um dos fotógrafos que registravam o evento. O cotidiano do Catetinho, residência oficial de JK, também está nas páginas da recém-lançada publicação. Em uma das fotos, Juscelino conversa com uma sorridente cozinheira e mexe na panela fumegante. Em outra imagem, dois meninos brincam em meio ao barro da primeira casa do presidente em Brasília.
Longe do poder, o dia a dia dos trabalhadores da construção civil também tem destaque. Na Cidade Livre, hoje Núcleo Bandeirante, eram abrigados todos os recém-chegados. Eles ouviam as notícias da Voz de Brasília pelas caixas de som instaladas nos postes da avenida principal. Mulheres de saias longas lavavam roupas em baldes enquanto os homens se dedicavam à construção, mesmo que improvisada, dos novos lares. As áreas de comércio foram surgindo, com pequenas farmácias, vendinhas, churrascarias e até um circo. As fotos mostram hospedarias, como os hotéis Buriti e Europa, ambos de estrutura simples de madeira.
Se as pessoas anônimas ou poderosas têm espaço garantido no livro de Lina e Michael, a arquitetura e o urbanismo de Brasília também se destacam nas páginas da publicação. Os monumentos projetados por Oscar Niemeyer, como os palácios da Alvorada e do Planalto, a Igrejinha e a Catedral, aparecem ainda em construção. Mas a maioria dos registros comprova o que os brasilienses conhecem na prática: é a interação dos candangos com a paisagem eternizada em cartões-postais, o que faz dessa cidade um lugar tão único.
Garimpo em diversas fontes
Para reunir as 1.410 fotos que ilustram o livro Arquivo Brasília, o alemão Michael Wesely e a brasileira Lina Kim fizeram pesquisas durante mais de três anos. As principais fontes de informação foram localizadas entre 2003 e 2006. Inicialmente, eles procuraram arquivos profissionais, cujos slides e fotos precisariam de restauro. Depois, identificaram materiais semiprofissionais, alguns em bom estado de conservação, outros nem tanto. Nos arquivos públicos, encontraram cerca de 6 mil fotos coloridas, a maioria bastante deteriorada.
O trabalho da dupla consistiu em selecionar as imagens e, principalmente, recuperá-las. Em seguida, foi necessário fazer ;sutis intervenções digitais;, como explicam especialistas na apresentação do livro. O objetivo não era fazer apenas um catálogo de arquitetura moderna, mas também um ;relato antropológico; do que representou a construção de Brasília.
Os autores do livro recorreram a instituições como o Centro de Documentação da Universidade de Brasília (UnB), o Instituto Moreira Salles, o Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico do Distrito Federal, a Universidade Católica de Goiânia, além dos acervos de Gabriel Gondim, Luís Humberto Miranda, Paulo Manhães e Ernesto Silva. A maioria das fotos é do Arquivo Público de Brasília.
Escolher as imagens mais representativas entre mais de 100 mil opções não foi fácil. ;Fizemos uma espécie de corte, pois havia muitas maneiras de organizar o material e decidimos nos concentrar nos processos desenvolvimentistas em curso;, justifica Lina Kim, em texto publicado no livro. A dupla trabalhou com uma equipe de assistentes para preservar o material selecionado. Os colaboradores e os pesquisadores usaram tecnologias avançadas de digitalização e de recuperação de imagens.
Michael e Lina tiveram também uma ajuda preciosa. Eles se reuniram com dezenas de pioneiros e estudiosos sobre Brasília, alguns hoje falecidos, para analisar e avaliar o conteúdo das imagens. Esses encontros foram documentados e também fazem parte do livro. Estão lá o artista plástico Athos Bulcão; o criador do arquivo público de Brasília, Walter Albuquerque Mello; o médico Ernesto Silva; o arquiteto Ítalo Campofiorito e o ex-diretor do Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico, Jarbas Silva Marques. (HM)
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