postado em 30/01/2011 08:00
Há quase três décadas, o gesseiro Valmir Pereira da Silva, 54 anos, decidiu trocar um barraco no Núcleo Bandeirante por uma casa espaçosa em Santo Antônio do Descoberto, município goiano situado a 45 quilômetros de Brasília. Na época, o trabalhador apostava que as terras vizinhas à capital iriam ter, em pouco tempo, uma grande valorização. Acreditava ver a cidade ser ocupada por grandes indústrias, faculdades de renome e comércio forte. No entanto, tudo o que o paulista de Campinas idealizou não passou de uma expectativa frustrada.
Desiludido com a região, na última quarta-feira ele resolveu se mudar para Samambaia. Ao fazer um balanço dos 28 anos em que morou numa das localidades mais pobres do Entorno, sobraram reclamações. ;Infelizmente, não dá mais para viver numa cidade que não tem segurança, o hospital mais parece um matadouro, as ruas são intransitáveis e o prefeito é um corrupto;, dispara. A situação de Santo Antônio do Descoberto dá início à série Radiografia do Entorno, na qual serão traçados os perfis das cidades que circundam o Distrito Federal. Amanhã, será a vez de Águas Lindas de Goiás.
O desabafo de Valmir reflete o pensamento de quase todos os 63 mil moradores da cidade, que cobram do poder público a melhoria dos serviços prestados, como coleta de lixo, transporte, saúde, educação e segurança.
A inércia da administração local despertou a fúria da comunidade na última segunda-feira, quando cerca de 2,5 mil pessoas fecharam as vias, enfrentaram a polícia, apedrejaram seis ônibus e atearam fogo em um. A reivindicação também pedia a saída do prefeito, David Leite. Alvo de três denúncias de improbidade administrativa ajuizadas pelo Ministério Público de Goiás (MPGO) ; sendo que duas delas pedem o seu afastamento ;, Leite se mantém no poder graças ao amplo apoio da Câmara dos Vereadores. Entre as denúncias a que responde, está o desvio de R$ 2 milhões do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que deveria ser usado para o pagamento de professores e melhorias das escolas do município.
Desapontados com a política na cidade que carrega o nome do padroeiro dos pobres, os mais humildes se apegam à fé para ver o lugar onde vivem tomar um rumo diferente. Como a dona de casa Luzia Paula da Silva, 33 anos, devota de Santo Antônio. ;A gente pede ao nosso santo porque os políticos nunca fazem nada. A verdade é que só um milagre para fazer nossa cidade melhorar;, disse.
O grito de socorro da comunidade chamou a atenção dos governos de Goiás e do DF, que anunciaram ações integradas para tirar Santo Antônio do Descoberto do fundo do poço. Mas enquanto as promessas não saem do papel, a dura rotina no município com ares de interior continua a mesma. A reportagem do Correio, ao longo de 24 horas, registrou os desafios de quem vive num lugar esquecido pelos governantes e onde os obstáculos começam muito antes de o dia clarear.
Saldo do confronto
O conflito em praça pública que envolveu 90 policiais e cerca de 2,5 mil moradores deixou um saldo de oito feridos e quatro detidos, seis ônibus apedrejados e um incendiado. Os prédios da prefeitura e da Câmara dos Vereadores também tiveram as vidraças quebradas. Devido ao clima tenso na cidade, o comércio, escolas e transporte público não funcionaram.
; Personagens do conflito
O padre e a cobradora
A manifestação que parou a cidade de Santo Antônio do Descoberto, na última segunda-feira, teve personagens marcantes. Um deles foi o padre Marcelo Vieira Júnior, 33 anos, (foto) que em meio aos tiros disparados pelos policiais e paus lançados pelos moradores, abriu a porta da Igrejinha de Santo Antônio e refugiou centenas de pessoas que participavam do protesto. O pároco se colocou à frente da tropa de choque e usou de sua autoridade religiosa para impedir que os agentes invadissem o templo. ;Na hora, só pensei em defender meu povo. Não poderia assistir, sem fazer nada, trabalhadores, crianças e até deficientes apanhando como se fossem bandidos;, ressaltou Marcelo. O padre ainda teve papel fundamental para decretar o fim da batalha em praça pública. Ele negociou a paz pessoalmente com o comandante da operação.
Já a cobradora Fernanda Leonardo de Jesus, 44 anos, não apanhou da polícia, nem mesmo ateou fogo em pneus nos acessos da cidade. Na verdade, ela nem sabia do protesto, quando viu o ônibus em que estava ser incendiado por um grupo de passageiros revoltados com a falência do transporte público no município. Ainda nervosa, Fernanda lembrou os momentos de tensão até conseguir deixar o veículo em segurança. ;Nós tentamos passar pela ponte, mas as pessoas tinham colocado fogo. O motorista voltou para a garagem e alguns passageiros já começaram a exigir o dinheiro do bilhete de volta. Disse a eles para ter paciência, mas alguns me ameaçaram e já começaram a pegar o dinheiro no caixa. Foi quando eu vi um homem espalhando gasolina dentro do ônibus. Fiquei desesperada, pensei que ia morrer queimada, porque ninguém deixava eu descer. Consegui sair com as pernas tremendo e, logo em seguida, o ônibus começou a queimar. Vai ser muito difícil esquecer esse dia;, relembrou Fernanda.