A expansão do crédito e a ascensão de brasileiros à chamada nova classe média explicam, em parte, o crescimento da venda de automóveis no Brasil. No caso de Brasília, somado a isso, está o fato de a cidade registrar a maior renda per capita (por pessoa) entre as capitais, fazendo dela um terreno fértil para empreendimentos ligados ao setor. Criada há 10 anos, a Cidade do Automóvel se consolidou ao longo da última década como o centro de maior concentração de revenda de veículos da América Latina, com 160 agências.
Na avaliação do primeiro vice-presidente da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), Vítor Augusto Koch, o parcelamento de veículos em até 100 meses permitiu uma grande parcela da população financiar o carro próprio. ;A prestação passou a caber no orçamento das pessoas de menor poder aquisitivo. Mas o governo precisa estudar medidas de controle. Não é que os brasileiros não mereçam ter um carro. Nós é que não temos infraestrutura para um crescimento tão acelerado da frota;, analisa. ;Se nada for feito, daqui a cinco anos, algumas cidades vão parar. Está na hora de fazer uma análise sobre o problema e tomar medidas concretas;, defende.
Há nove meses, Renato Benício dos Santos, 22 anos, abraçou a profissão de motoboy. Morador do Recanto das Emas, ele começou a entender o que os estudiosos definem como uma cidade parada. Renato relata que a volta para casa ; pela Estrada Parque Núcleo Bandeirante ; é lenta, mesmo para quem está sobre duas rodas. ;A partir das 18h, vira um caos. É muito caminhão e muito carro. Fica naquele anda e para, anda e para. Aí o motorista de trás cola na sua traseira. Quando o semáforo abre, todo mundo quer acelerar para ganhar o tempo que ficou parado. Tem acidente direto;, detalha.
Confira videorreportagem sobre o trânsito de Brasília
Dependência
Professor de engenharia de tráfego na Universidade de Brasília (UnB), Paulo César Marques explica que o crescimento da frota em função da melhora do poder aquisitivo das pessoas é uma coisa a ser comemorada. ;O que é nocivo é a dependência do veículo e o uso que se faz dele. Do jeito que está, não haverá espaço possível para a circulação e ampliação de estacionamentos que dê jeito;, atesta. Marques lembra que alguns países da Europa têm taxas de motorização até maiores que a de Brasília. Mas as pessoas usam o metrô, o ônibus e a bicicleta. ;Aqui, temos uma política muito permissiva ao uso do transporte individual;, critica.
O especialista cita o exemplo de Londres, na Inglaterra, onde o governo criou o pedágio urbano na área central como forma de desestimular o fluxo de veículos. O Transport for London (TFL), o órgão responsável por cuidar do transporte na capital, instituiu a taxa em fevereiro de 2003, depois de uma ampla consulta pública. Naquele ano, o valor cobrado para circular no centro era 5 libras por dia. Em 2005, a taxa subiu para 8 libras e, em 4 de janeiro deste ano, o valor foi reajustado para 10 libras, cerca de R$ 26. Assessor do TFL, Dhillon Sandeep explica que toda a receita é investida na operação da rede de transporte público. ;Desde que o pedágio foi introduzido, em 2002, houve 27% de redução no tráfego na zona central. Isso equivale a 86 mil veículos a menos por dia e o congestionamento caiu cerca de 30%;, afirmou.
Com a garagem lotada
A família da autônoma Maria Alice Moutinho, 52 anos, possui quatro carros: um para cada integrante. A moradora de Taguatinga garante que, se o governo oferecesse um transporte público decente, seria a primeira a deixar o carro na garagem. ;O poder público não pode pedir para que motoristas deixem o carro em casa se oferece um serviço de péssima qualidade. Se os ônibus fossem mais confortáveis, o trânsito melhoraria, com certeza;, avalia.
Especialistas ouvidos pelo Correio concordam que o Estado precisa investir em transporte de massa para reduzir a dependência que o cidadão tem do carro. Porém, eles alertam sobre a necessidade de as pessoas se conscientizarem sobre a importância do uso racional do veículo. ;Se a população não começa a usar efetivamente o transporte público e, com isso, cobrar melhorias efetivas, o governo continuará inerte;, acredita José Leles de Souza, doutor em engenharia de transportes e professor universitário.
Enquanto o transporte público for ineficiente, intervenções de engenharia de tráfego, como ajuste de semáforos, mudanças de sentido de circulação em vias e utilização de equipamentos de controle de velocidade podem amenizar os transtornos do fluxo intenso, mas não resolver o problema. ;É preciso iniciar imediatamente um trabalho de conscientização do usuário. Do jeito que está, é insustentável. Não posso transformar o carro nas minhas pernas. Uso para trabalho, para lazer, para ir à esquina comprar um pão. As pessoas precisam contribuir;, defende Leles.
Ajustes pontuais
Alguns dos ajustes citados por ele foram colocados em prática e amenizaram a angústia de quem fica parado na via. A duplicação da DF-150, na região da Fercal, melhorou a fluidez do trânsito. A construção do viaduto da QNL, perto do Estádio do Serejão, em Taguatinga, também acabou com o congestionamento que se formava no local. Diariamente, o helicóptero do Departamento de Trânsito (Detran) sobrevoa a cidade e produz relatórios que são encaminhados para as áreas de engenharia, fiscalização e estatística. ;Com as fotos e os relatos produzidos, conseguimos detectar a necessidade de mudança de tempo do sinal, de mudança na sinalização e do encaminhamento de viatura para orientar o trânsito quando acontece acidente;, detalha o diretor-geral, José Alves Bezerra. ;São ações que melhoram, mas não resolvem de todo. O governo tem o projeto de melhoria do transporte público e, além disso, as pessoas precisam se conscientizar de que precisam fazer a sua parte;, aponta Bezerra.
Mas no dia a dia, o que mais falta são contribuições para um trânsito melhor, segundo o taxista Elias Ferreira, 32 anos. Para ele, os piores lugares para se dirigir em Brasília são o Setor Comercial Sul (Quadras 1 e 2, especialmente) e o Eixo Rodoviário, a partir das 17h. ;No Setor Comercial, os motoristas param em fila dupla ou tripla e os caminhões de descarga ficam no meio da rua. Ninguém consegue passar;, revela. No Eixo Rodoviário, o engarrafamento começa na altura da Quadra 110 e segue até o balão do Aeroporto. ;É preciso muita paciência;, diz.
Encontrar alguém que não se queixa do trânsito em Brasília é algo incomum nos dias de hoje, mas é possível. ;Eu não acho o trânsito de Brasília ruim, não. Acho bom;, respondeu o vigilante Cláudio Rodrigues da Silva, 40 anos. Uma conversa rápida e, está explicado o motivo de Cláudio não reclamar. Morador de Águas Lindas (GO), ele trabalha à noite em um shopping do Plano Piloto. ;Quando saio de casa, por volta das 5 da tarde, está todo mundo indo. Quando volto, às 7h, todos estão vindo para Brasília. Estou praticamente sozinho na pista;, diz, sorrindo.
Colaboraram Saulo Araújo, Isabel Fleck e André Corrêa
O povo fala
O que o governo deveria fazer para melhorar o trânsito no DF?
Décio de Oliveira,
48 anos, vendedor, morador de Planaltina
;Fico quase uma hora no engarrafamento todos os dias. Eu já sofro dentro do meu carro, imagina em um ônibus lotado. Acho que deveriam expandir o metrô para Planaltina e Sobradinho. Isso sim causaria reflexos no trânsito.;
Sônia Gontijo Andrade,
37 anos, comerciante, moradora de Sobradinho
;O DF deveria adotar o sistema de rodízio de veículos, assim como é feito em São Paulo. Está chegando a hora que não vai ser mais possível andar de carro aqui. Já não tem estacionamentos suficientes e parece que nem existe espaço para se construir outros. Ao meu ver, a única solução é controlar o número de carros circulando.;
Gedeon Lobo,
68 anos, taxista, morador de Ceilândia
;Para melhorar o trânsito no DF, só
se o Detran fizer uma reciclagem de boa parte dos motoristas e dificultar mais a vida de quem ainda vai tirar carteira. Muitos engarrafamentos são causados porque os condutores são ruins de roda.;
Rubens Matias de Azevedo,
63 anos, motorista, morador do Guará
;O Detran deveria fiscalizar mais. Tirar das ruas quem faz muita bobagem. Essa história de inchar a cidade de pardais não adianta. O certo seria investir em educação e aumentar o número de obras de duplicação de vias.;
José de Melo,
47 anos, representante comercial, Samambaia
;O governo deveria investir mais em obras de expansão de estradas. Mas isso tem de ser feito de forma inteligente. Na EPTG, por exemplo, duplicaram, mas um engarrafamento enorme se forma na chegada de Taguatinga. Não resolveu o problema.;
Leia na edição de amanhã reportagem sobre o caos do tranporte público