Renato Alves
postado em 06/05/2011 08:00
Desde o desencadeamento da Operação Sexto Mandamento, em 15 de fevereiro, agentes federais buscam pistas sobre um suposto cemitério clandestino usado por policiais militares goianos para esconder os corpos de algumas das vítimas de execuções. Apesar das denúncias, ainda não há informações precisas sobre a localização dessa área de desova. Mas, em cidades distintas, foram encontradas ossadas que seriam de dois dos 36 desaparecidos após abordagens da PM nos últimos 10 anos. Faltam testes de DNA para confirmar as identidades.
Uma das ossadas está enterrada em um cemitério de Goiânia. Ela consta como sendo a de um indigente, mas policiais civis e federais desconfiam de se tratar de um rapaz desaparecido em 2004, após ser abordado por uma equipe das Rondas Ostensivas Táticas Metropolitanas (Rotam), unidade especial da Polícia Militar de Goiás.
Como mostrou uma das reportagens da série ;Crimes de farda;, iniciada no último domingo, dos 19 PMs presos pela Polícia Federal há dois meses e meio, boa parte integrou a Rotam de 2003 a 2005, período em que a PM mais matou em Goiânia. De 6 de março de 2003 a 15 de maio de 2005, foram registrados 117 homicídios na capital do estado, cuja autoria é atribuída a militares, a maioria da Rotam. Do total de vítimas, 57 (48,7%) não tinham ficha criminal. Outras 60 (51,3%) eram foragidas da Justiça ou acusadas de algum crime.
A outra ossada investigada agora foi encontrada e resgatada por técnicos da Polícia Civil goiana em Goianira, a pouco mais de 20km da capital do estado. ;No caso da primeira ossada, precisamos de autorização judicial para a exumação, o que já foi pedido. Já na segunda, como na outra, teremos que fazer teste de DNA, o que também depende de decisão judicial;, explicou a delegada Adriana Accorsi, também superintendente de Direitos Humanos da Secretaria de Segurança Pública de Goiás.
No lugar errado
Para os investigadores, muitos dos desaparecidos estavam no lugar errado, na hora errada. As duas vítimas mais recentes seriam dois jovens vistos pela última vez em uma revista da Rotam, em novembro do ano passado, na capital goiana. O estudante Brunno Élvis Lopes Araújo, 16 anos, e o office boy Adriano Souza Matos, 22, saíram de moto para pagar uma conta. Eles sumiram, além do veículo.
Os dois estavam em uma CB 300 pilotada por Adriano. Testemunhas contaram, em depoimento, que por volta das 13h uma equipe da Rotam abordou a dupla, próximo ao Setor Nova Vila. No comando da operação, segundo o pai da vítima, estava o cabo Novandir Rodrigues da Silva. Era ele quem dava ordens aos soldados Wendel da Silva Borges e Wellington Alves Magalhães.
Brunno e Adriano foram revistados e liberados, mas há a suspeita de que tenham sido seguidos pelos militares. O pai de Brunno Araújo é um sargento aposentado da PM goiana. Ele esteve com os colegas de farda após o sumiço do filho. ;Os três confirmaram a abordagem, mas negaram qualquer agressão. Mas não acredito nessa versão;, afirmou.
O pai, que prefere não ser identificado, busca o paradeiro do filho e explicações para o desaparecimento. ;Me sinto envergonhado, frustrado e traído por ter dado o meu sangue a essa corporação por 30 anos. Sei que o meu filho sumiu pelas mãos da PM. Seria menos doloroso se fosse pelas mãos de um bandido comum;, desabafou.
O sargento se lembra do filho, criança, se divertindo no quartel em que prestava serviço. ;Ele brincava nas motos, corria pelo pátio. Todos os colegas o conheciam. Era um menino doce, nunca fez mal a ninguém. Sei que parece loucura, mas ainda tenho um pouco de esperança de que ele esteja vivo;, completa o pai de Brunno.
Investigações arquivadas serão reabertas
A delegada Adriana Accorsi preside a Comissão de Defesa da Cidadania, criada pelo governo de Goiás após a Operação Sexto Mandamento, para investigar os casos de desaparecidos em abordagens policiais. Apesar de apoiar a busca pelo suposto cemitério clandestino, denunciado por integrantes da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Goiás, Accorsi duvida que exista um único ponto de desova em Goiás. ;Acredito que muitas pessoas (os desaparecidos após as abordagens da PM) tenham sido incineradas, para não deixar vestígio;, afirma.
A prisão dos acusados de integrar um grupo de extermínio encorajou novas denúncias de execuções por parte de familiares das vítimas. Até a Sexto Mandamento, órgãos de defesa dos direitos humanos contavam 20 desaparecidos após contato com PMs apenas na Região Metropolitana de Goiânia. Em pouco mais de dois meses, surgiram os outros 16 casos. Em todos, comprovadamente, as vítimas foram vistas com vida pela última vez em uma abordagem da Polícia Militar.
Além dos 36 desaparecidos, mais 300 pessoas morreram, oficialmente, em confrontos com alguns dos policiais militares presos, e outras fora do inquérito da Polícia Federal, nos últimos 10 anos. Para a PF e o Ministério Público de Goiás (MPGO), há fortes indícios de fraude nas supostas troca de tiros. Na maioria delas, laudos do Instituto Médico Legal (IML) mostram sinais de tortura e de execuções, como tiro na nuca da vítima.
Culpa do Estado
Desde a criação, em 1; de março, a Comissão de Defesa da Cidadania ouve familiares dos desaparecidos e levanta documentos referentes aos crimes, como inquéritos e laudos do IML. A intenção é reabrir as apurações arquivadas, verificar falhas e propor medidas para resolver os casos. Participam da comissão religiosos, integrantes da maçonaria, representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e autoridades estaduais de segurança pública. O grupo estuda levar o estado de Goiás a reconhecer a culpa pelos desaparecimentos, tal como o governo federal fez em relação aos desaparecidos da ditadura militar. Essa e outras propostas devem constar em um relatório a ser concluído em 20 dias.
Há mais de uma década, o MPGO apura e processa vários militares envolvidos em ações criminosas. No entanto, diante da constatação de limitações dos aparelhos de investigação do estado, em dezembro de 2009, a instituição pediu ao Ministério da Justiça a intervenção daPF, o que ocorreu em abril de 2010 e resultou na Operação Sexto Mandamento.
Entenda o caso
* O Correio Braziliense publica, desde o último domingo, a série ;Crimes de farda;. Durante um mês, repórteres levantaram o histórico de matança da Polícia Militar goiana. Além de entrevistar autoridades e vasculhar documentos que comprovam a execução de cidadãos, os jornalistas estiveram com familiares de mortos por policiais militares em serviço e de alguns dos 36 desaparecidos após abordagem de uma equipe da PM. Também encontraram testemunhas e outras pessoas ameaçadas de morte por denunciarem os agentes de segurança envolvidos em assassinatos, como padres, freiras e policiais civis e federais.
* Há um ano e meio, a Polícia Federal de Goiás começou a apurar cerca de 50 mortes em confrontos com a PM em Goiânia e no Entorno. Em 15 de fevereiro de 2011, policiais federais prenderam 19 PMs acusados de integrar um esquadrão da morte, na operação denominada Sexto Mandamento. Entre eles, o tenente-coronel Ricardo Rocha Batista e o subcomandante geral da PM goiana, coronel Carlos Cézar Macário. Desde então, todos respondem pelos crimes de homicídio qualificado em atividades típicas de grupo de extermínio, formação de quadrilha, tortura qualificada, tráfico de influência, falso testemunho, ocultação de cadáver e ameaças.
* Como mostrou o Correio em outra série de reportagem, iniciada em 11 de maio de 2009, PMs respondem a pelo menos 20% dos homicídios registrados em Formosa, município goiano distante 70km de Brasília. Em 2008, os policiais admitiram ter tirado a vida de 10 das 48 pessoas assassinadas. Outros cinco casos ocorreram no segundo semestre de 2007. Na maioria dos registros, os militares alegaram confrontos com bandidos armados. Mas grande parte das vítimas não respondia por delitos graves e morreu com pelo menos um tiro na cabeça. Em quase nenhuma suposta troca de tiros houve moradores como testemunhas.
* O aumento no número de mortes no município do Entorno coincidiu com a chegada do então major Ricardo Rocha ao batalhão de Formosa, em 2007. O fenômeno chamou a atenção do MPGO e da Polícia Civil, que abriram investigações sigilosas na capital do estado. Antes de Formosa, o major esteve em Rio Verde (GO), onde é acusado de executar cinco condenados que haviam fugido da cadeia e de matar com cinco tiros um homem desarmado.