Cidades

História de moradores com doença rara em Goiás vai virar documentário

Renato Alves
postado em 22/05/2011 07:54

Após ganhar as páginas do Correio Braziliense, atrair as atenções de cientistas e virar livro, vai parar nas telas de cinema o drama de 21 portadores de xeroderma pigmentoso, moradores de Araras, povoado de Faina (GO), município a quase 500km de Brasília. O mal, transmitido de pai para filho, deixa a pessoa hipersensível à luz, causa câncer, mutila e mata. Nas últimas cinco décadas, 20 habitantes do lugarejo morreram em decorrência da doença. Mais de 60 perderam a vida com os mesmos sintomas, mas não tiveram diagnóstico. Em nenhuma outra parte do mundo houve registro de tamanha incidência dessa enfermidade.

Professores e alunos da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) estão produzindo um documentário sobre o raro fenômeno genético de Araras. O trabalho teve início há um mês, quando a equipe visitou a comunidade e colheu depoimentos dos moradores. ;Vamos entrevistar mais gente, incluindo médicos e outros profissionais que tratam essas pessoas. Mas a ideia não é falar da doença, e sim mostrar a história dessas pessoas, como são solidárias, como sabem viver em comunidade, como lutam pela vida;, conta o coordenador do projeto, Leandro Bezerra Cunha, professor de fotografia e cinema da PUC-GO.

Além dele, nove universitários estão envolvidos na produção, que não tem data para ser concluída e ganhar as telas. ;Dependemos de parcerias, de patrocínio. Queremos entrevistar o máximo de pessoas possível e ainda fazer algumas simulações, contar passagens das histórias dessa comunidade;, explica Leandro Cunha. Ele teve a ideia de realizar o documentário após ler o livro Nas asas da esperança, de Gleice Francisca Machado, lançado em fevereiro.

Ignorados pelo Estado
Gleice Machado virou líder comunitária de Araras após ver muitos primos e tios morrerem por causa da xeroderma sem nenhuma assistência. Um ano e meio atrás, ela decidiu dar voz aos familiares esquecidos pelo Estado. Com muita luta, essa mulher, hoje com 34 anos, fez o que nenhum político, enfermeiro, médico, promotor ou representante do município e governo estadual havia feito até então para mudar a realidade do povoado. Por causa de sua insistência, ela conseguiu tornar público o drama dos portadores de xeroderma.

A história de abandono de Araras e dos seus habitantes começou a mudar quando Gleice, por meio de uma irmã moradora do Distrito Federal, procurou o Correio Braziliense, em outubro de 2009. As duas convenceram o jornal a enviar uma equipe ao povoado, que nem sequer existe nos mapas. Na época, não havia qualquer reportagem ou informação oficial sobre os doentes do lugarejo. Era como se eles não existissem.

Ao chegar ao distrito, carente de equipamentos públicos, emprego e informação, os jornalistas encontraram pessoas com tumores à vista e sem parte do rosto. A maioria nem fazia ideia do que se tratava, como tantos haviam sido vitimados pela doença. Sem aposentadoria por invalidez, instrução, dinheiro e acompanhamento médico ideal, eles passaram a maior parte da vida expostos ao sol, pois sobrevivem da agricultura e da pecuária. A região registra temperaturas entre 20;C e 35;C.

Drama familiar
Gleice Machado e Alisson Wendel: luta reforçada pela saúde de toda a comunidadeDurante a visita da equipe do jornal, todos reclamavam das dores, da falta de medicamentos e de atendimento médico. A maioria não tinha prótese para substituir o pedaço do corpo arrancado por bisturis. E os poucos que tinham não conseguiam substituí-la no tempo sugerido pelos doutores da longínqua Goiânia.

As entrevistas com os doentes de Araras renderam uma série de reportagens, iniciada em 4 de outubro de 2009. Com ela, Gleice Machado passou a cobrar das autoridades a dívida centenária com os doentes de Araras. Logo em seguida, ela recebeu o diagnóstico das pintas que começavam a tomar conta do rosto do filho, Alisson Wendel. Aos 7 anos, era o mais recente portador de xeroderma no povoado.

Em vez de esmorecer, Gleice ganhou força e passou a cobrar ainda mais dos governantes. Mas as medidas para dar esperança àquela gente abandonada ainda demandariam tempo. Nos primeiros meses após as reportagens do Correio, a Secretaria de Saúde de Goiás resistia em dar mais atenção aos doentes de Araras. Afirmava não poder fazer nada além das consultas e cirurgias para retirada de tumores dos pacientes. Negava até distribuição gratuita de protetor solar, essencial na prevenção.

Força-tarefa

Somente quatro meses depois, as autoridades goianas começaram a tomar as primeiras providências para assistir os 21 moradores do vilarejo portadores do mal raro e mortal. Por iniciativa do Ministério Público estadual, representantes da área de saúde de Goiás organizaram uma força-tarefa para atender os doentes. Desde então, unidos em uma associação, a Apoderma, que reúne 30 enfermos ; inclusive de outros estados ;, os pacientes de Araras têm conseguido maior atenção do Estado.

Sob pressão do Ministério Público, a Secretaria de Saúde prometeu criar um ambulatório só para os portadores de xeroderma, no Hospital-Geral de Goiânia (HGG). A unidade ainda não se concretizou, mas os pacientes que esperavam até dois meses para um atendimento médico fazem consultas semanais com uma equipe especializada. A comunidade acadêmica também reagiu.

Geneticistas da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de Goiás (UFG) estudam o caso há mais de um ano. Além de examinar os 21 pacientes de Araras, coletaram material genético de todos os familiares dessas pessoas, gente sem manifestações da doença, mas que tem tudo para adquiri-la. A equipe médica pretende identificar casos suspeitos para realizar um trabalho preventivo a fim de evitar a disseminação do xeroderma na comunidade e minimizar os efeitos nos novos portadores. É, no entanto, um trabalho demorado e sem garantia de sucesso.

Gleice passa protetor solar no filho: cuidado extremo

História escrita
Na luta quase solitária para chamar atenção aos doentes da sua comunidade, Gleice Machado decidiu escrever um livro. Reuniu as reportagens do Correio e de outros jornais que se interessaram pela história, artigos dos especialistas que estudam o caso e depoimentos dos pacientes, além de impressões próprias. Com apoio de um empresário goiano e de instituições públicas e privadas, lançou a publicação, intitulada Nas asas da esperança.

;O objetivo da obra é chamar a atenção da comunidade científica para estudar o fenômeno, e dos governos e de toda a sociedade, para dar mais assistência ao povo de Araras, esquecido por tanto tempo. A realização desse documentário (da PUC-GO) nos dá mais fôlego nessa luta;, comenta a autora do livro. Parte da renda com a venda da obra será revertida à Apoderma, criada e dirigida pela incansável Gleice.

Como ajudar

Quem quiser adquirir o livro Nas asas da esperança ou ajudar os doentes de Araras de outra forma deve ligar para Gleice Machado ; (62) 3391-1174,
8561-9263 ou 9299-6645 ;, enviar e-mail para gleice.araras@hotmail.com ou mandar correspondência em nome dela para Av. João Artiga, 815, Centro, Matrinchã, Goiás, CEP 76.740-000.

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