Em tese, é função de deputado defender o que é de interesse público. Mas há casos em que o parlamentar atua em causa própria. Um desses exemplos está em plena tramitação na Câmara Legislativa. No episódio em questão, o movimento dos distritais não é o de legislar em proveito particular, mas o de evitar que uma nova lei prejudique a conveniência de políticos com assento na Casa. Projeto que proíbe a contratação pelo governo de empresas em nome de distritais ou de parentes desses corre o risco de ser arquivado hoje antes de ir à plenário por força da articulação de deputados empresários, alguns deles cuja família mantém negócios com o GDF. De 2007 até agora, o governo local já pagou R$ 773,2 milhões a pessoas jurídicas ligadas a distritais. Dessa quantia, R$ 70,7 milhões foram repassados somente em 2011.
Apresentado em março de 2008, somente agora o Projeto de Lei n;741 chegou à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Legislativa, instância em que são analisados critérios técnicos e jurídicos para a admissibilidade ou arquivamento da proposta (Leia O que diz a lei). Uma vez aprovado na CCJ, o projeto segue para a votação em plenário. Caso contrário, deixa de existir, destino provável da proposta que impede o Poder Executivo de manter contratos com empresas em nome de deputados, de seus parentes, ou até mesmo quando esses forem acionistas ou dirigentes de parceiras do GDF. O PL n; 741 também estende o veto para empresas públicas, autarquias e fundações mantidas pelo governo.
A justificativa contida na redação da proposta é a que a nova lei ;visa a assegurar transparência nas contratações de bens e serviços cujos proprietários sejam parlamentares ou mantenham vínculo direto, evitando que esta influência sirva de apoio para beneficiar tais personagens da vida pública do Distrito Federal;. Atualmente, a única amarra da legislação com impacto no universo dos deputados com interesses empresariais é o de que, a partir da posse na Câmara Legislativa, eles não podem ser donos, controladores, diretores ou mesmo receber salário de firmas que mantenham contrato com o governo. A proibição está prevista no artigo 62, II, da Lei Orgânica do Distrito Federal.
A legislação, no entanto, não impede que parentes de distritais estejam à frente de negócios mantidos com o GDF. É exatamente essa abertura que admite situações como as dos deputados Cristiano Araújo (PTB) e Eliana Pedrosa (DEM). Os dois são exemplos de parlamentares atingidos diretamente caso a nova regra seja aprovada em plenário. Isso porque esses políticos pertencem a famílias que executam contratos milionários com a administração pública.
Entre 2007 e 2011, as empresas de propriedade da família do distrital Cristiano Araújo receberam juntas R$ 441,5 milhões do governo local, segundo dados do Sistema Integrado de Gestão Governamental (Siggo), que registra movimentação financeira do GDF. Desse total, R$ 45,9 milhões foram transferidos em 2011. As firmas ligadas a Eliana Pedrosa, em nome de familiares da distrital, foram beneficiadas, no mesmo período, com repasses de R$ 270,8 milhões, sendo 24,8 milhões neste ano. Essa também era a realidade de Leonardo Prudente (sem partido), antes de renunciar ao cargo em função do escândalo da Caixa de Pandora. Entre 2007 e 2009, empresas vinculadas ao ex-parlamentar receberam R$ 60,9 milhões.
Aborto
Mas dificilmente os distritais empresários terão de restringir seus negócios por iniciativa da Câmara Legislativa. O primeiro passo para abortar o PL n; 741 foi dado pelo relator da matéria na CCJ. Em 3 de maio, o deputado Joe Valle (PSB) assinou um parecer pela inadmissibilidade da proposta. Na argumentação, o relator alega que o projeto restringe a livre concorrência, sustenta que o artigo 62, I, a, da Lei Orgânica já trata do assunto e aponta ainda vício formal no texto, por entender que se trataria de tema de iniciativa exclusiva do Poder Executivo.
O presidente da CCJ, deputado Chico Leite (PT), pediu vista do PL e apresentou na semana passada um voto em separado, fazendo alguns ajustes no texto original, mas sugerindo a admissibilidade do projeto. Entre as mudanças apontadas, o petista defende a necessidade de se especificar o grau de parentesco na redação da proposta e inclui o mesmo dispositivo previsto na Súmula Vinculante, segundo o qual fica configurado nepotismo parentesco consanguíneo em até terceiro grau.
As chances de o substitutivo ser aprovado, no entanto, são muito pequenas. Há uma movimentação que inclui integrantes da CCJ e distritais que sequer participam da comissão para arquivar o projeto. Na semana em que o tema entrou na pauta ; como indicava a página da Câmara Legislativa na internet ; três assessores de Cristiano Araújo, que não participa da comissão, estiveram nas reuniões para acompanhar o caso. Os funcionários do distrital levaram cópias de toda a tramitação do PL, demonstrando o interesse do parlamentar pelo tema.
Bastam três votos contrários para o assunto sair da pauta da Câmara. Joe Valle será um deles. Aylton Gomes (PR), outro. Ele estaria agindo na CCJ em sintonia com os interesses de Cristiano Araújo e Eliana Pedrosa. No dia em que a proposta foi analisada na comissão, Aylton Gomes chegou a pedir a Olair Francisco (PTdoB), outro integrante da comissão, para que esperasse a votação do PL n; 741 antes de se ausentar da sessão. Mas não foi preciso, pois a discussão e a votação do assunto acabaram adiadas para hoje às 10h. Olair não vai participar da reunião, quando será substituído por Celina Leão, uma aliada de Eliana Pedrosa.
Proposta polêmica
De autoria do ex-deputado Rogério Ulysses (sem partido), o projeto começou a tramitar no primeiro trimestre de 2008 e desde então já foi avaliado em duas comissões na Câmara: a de Assuntos Sociais e a de Desenvolvimento Econômico, Sustentável, Ciência, Tecnologia, Meio Ambiente e Turismo. Na primeira comissão, o tema foi rejeitado, mas, na segunda, a proposta foi aprovada por maioria.
Denuncie
Segundo artigo 63, I, do Regimento Interno da Câmara Legislativa do DF, é de competência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) analisar os projetos que tramitam na Casa sob o ponto de vista da admissibilidade, que deve levar em consideração aspectos constitucionais, legais, de redação e da técnica legislativa. Assim, equívocos mais leves, como um erro no texto do projeto ou os de natureza jurídica ; como o vício de iniciativa, quando um tema de prerrogativa exclusiva do Executivo é proposto pelos deputados ; podem interromper a tramitação e determinar o arquivamento dos projetos. A análise pela CCJ ocorre sempre antes da votação em plenário e depois que o tema já passou pelas comissões temáticas.
Critérios técnicos
Mesmo que não diretamente, a maioria dos votos contrários ao projeto em questão deve ser representativo da classe empresarial. Joe Valle afirmou ao Correio que, ao rejeitar o PL, agiu estritamente dentro de critérios constitucionais. Ele informou que para sugerir a inadmissibilidade do projeto seguiu a orientação de parecer elaborado pela consultoria legislativa da Casa. E ressaltou que ;não tem, nunca teve e nem terá; contrato com o governo, apesar de ser dono de uma empresa que é referência em produtos orgânicos. ;Meu parecer é técnico, uma homenagem à obediência de preceitos legais;, alegou. Joe citou que a Câmara Federal produziu um relatório muito parecido com o seu, sustentando inadequação jurídica do PL.
Eliana Pedrosa disse não ser contrária à proposta. Ponderou, no entanto, que ;buscará saber se o projeto se estende a organizações não governamentais que recebem recursos públicos e contam com a participação de parentes de deputados;. Reiterou que vendeu suas ações da empresa Dinâmica antes de ser eleita para seu primeiro mandato, em 2002, e que os negócios estão sob responsabilidade de sua família.
O deputado Aylton Gomes afirmou que seu voto será baseado na legislação em vigor. Segundo destacou, a Constituição já trata do tema, restringindo parlamentares de firmarem contratos com órgãos da administração pública.
Cristiano Araújo alegou não ter participado de nenhuma articulação para derrubar o PL. Segundo ele, ;quem vai definir o tema são os membros da CCJ;. O líder do PT na Câmara, Wasny de Roure, é contra a lei: ;Essa matéria é estranha à natureza da democracia. Seria cercear o processo político;. Ou seja, chance quase zero de o debate sobreviver à sessão de hoje.