É como se você estivesse correndo, ganhando cada vez mais velocidade. De repente, algo invade o caminho, como um freio invisível. A vida para por alguns instantes. Em questão de minutos, nada mais é como você conhecia. Surge o medo. Também podem nascer força e coragem, até então desconhecidas. Muitas são as reações e os sentimentos vividos por quem recebe um diagnóstico de câncer.
Algumas das expressões mais usadas pelas pessoas que viveram a experiência são ;recebi uma sentença de morte; e ;perdi o meu chão;. Outros preferem chamar o tratamento de ;processo de cura; e fazer do otimismo a principal arma nessa batalha. Na busca por histórias marcadas pela vitória, o Correio ouviu mulheres de várias idades e classes sociais.
Uma delas é a advogada Verônica Maria de Almeida, 46 anos, moradora da Asa Sul, que precisou aprender a conviver com o câncer em duas ocasiões: quando encontrou nódulos na mama e, anos depois, ao descobrir uma metástase, quadro mais grave da doença, quando ela se espalha pelo corpo (Leia na página ao lado). A babá Erivan Oliveira, 36 anos, que vive em Samambaia, descobriu o câncer aos 32 anos. Sem plano de saúde, ela procurou ajuda no Hospital de Base, onde a mãe dela, à época, fazia tratamento para vencer o mesmo mal. Erivan sobreviveu. A mãe dela não.
Em Brasília, o Hospital de Base é referência quando o assunto é câncer. Na sala de espera da oncologia do maior centro de saúde da capital ; com 833 leitos, distribuídos em 12 andares ; mulheres e homens com o diagnóstico em mãos dividem angústias e esperanças. Segundo a Secretaria de Saúde do DF, há pelo menos 5 mil pessoas em tratamento na unidade. Faltam equipamentos para diagnóstico, remédios, profissionais, alémde itens básicos.
Essa realidade atraiu a socióloga e pesquisadora da Universidade de Campinas Maria Inez Montagner, aluna de doutorado na Faculdade de Ciências Médicas (FCM), ao Hospital de Base. Durante um ano e meio, ela compartilhou com 19 mulheres, com menos de 40 anos e mais de 70, a vivência do câncer de mama. Maria Inez abordava as pacientes quando elas chegavam para a primeira consulta. Ao sair do consultório médico com a confirmação, a maioria nem sequer pronunciava o nome da enfermidade. Tratava o câncer por ;ele;, ;a coisa;, ;o mal;.
A socióloga voltou a encontrar as pacientes no dia seguinte à cirurgia de retirada parcial ou total do seio. Deparou-se com pessoas fragilizadas, que passaram a questionar a própria feminilidade. Maria Inez lançou um olhar social sobre elas, na tentativa de desfazer a associação, ainda tão frequente, entre câncer e morte. ;É necessário dizer a essas mulheres que elas somente morrerão se não tratarem o câncer;, afirmou em entrevista ao Jornal da Unicamp.
Dificuldades
Na pesquisa, constatou-se também que boa parte das pacientes perdeu o emprego ao descobrir a doença. Muitas das entrevistadas desenvolviam trabalhos que exigiam delas plena disposição física, como faxina, para os quais ficavam incapacitadas durante o tratamento. Assim, além das preocupações próprias de quem precisa lutar contra uma enfermidade tão agressiva, muitas tiveram que lidar com problemas de ordem prática, como o sustento dos filhos e da casa.
O estudo avaliou ainda a relação dessas mulheres com o sistema de saúde. Com pouca instrução, grande parte via o atendimento como um favor e não como um direito. Muitas passaram anos sem buscar atendimento médico preventivo. Até conseguirem consultas, algumas viram os tumores crescerem. A socióloga se surpreendeu ao notar que várias jovens e senhoras em tratamento se culpavam pela doença. ;Elas diziam que tinham negligenciado o próprio corpo.;
O tratamento de câncer pode ser longo. As etapas não seguem necessariamente uma ordem. Alguns começam com a quimioterapia ; quando o tumor precisa diminuir antes da realização da cirurgia. Outras pessoas passam logo pela operação para, em seguida, iniciar as temidas sessões de quimio e radioterapia. O estigma que acompanha as pacientes, porém, ainda é um dos problemas mais graves. ;Quando perdem os cabelos, elas são evitadas dentro do ônibus. Uma mulher me disse uma coisa brilhante: ;Elas não têm medo do câncer porque é câncer. Têm medo porque mata;;, explica a socióloga.
Para amenizar a dor, as mulheres em tratamento no Hospital de Base contam com iniciativas voluntárias, de importância reconhecida: a Rede Feminina de Combate ao Câncer e o Movimento de Apoio ao Canceroso (MAC). A primeira, além de apoio emocional, oferece cestas básicas, cursos e até próteses externas para os seios. A MAC gasta cerca de R$ 6 mil por mês para comprar itens em falta na rede pública, como remédios, suportes de soro e agulhas.
Efeitos colaterais
A quimioterapia é uma técnica invasiva que combate as células doentes, mas que também pode afetar células saudáveis, trazendo efeitos colaterais. Na radioterapia, raios são enviados diretamente no tumor há lesão e há menos prejuízos.
Faltam infraestrutura e pessoal
Este ano, 5.930 mil casos da doença devem ser registrados no Distrito Federal, segundo previsão do Instituto Nacional do Câncer (Inca),órgão ligado ao Ministério da Saúde. A maior parte (3.220) deve atingir mulheres. Desses, 660 representam novos casos de câncer de mama, o tipo que mais aflige o sexo feminino em Brasília (veja arte). A taxa condiz com a média nacional.
A Secretaria de Saúde, órgão responsável por promover ações para conter o avanço da enfermidade, admite não ter números atualizados a respeito desse mal. Os bancos de dados dos principais hospitais da cidade não são abastecidos há anos. Com estatísticas defasadas, pessoas que sofrem com as dificuldades do sistema de saúde em busca da cura perdem expressão.
Faltam também na rede pública mamógrafos, equipamentos usados na detecção de tumores nos seios. Há apenas três aparelhos no DF. A recomendação do Ministério da Saúde é de um mamógrafo para cada 240 mil habitantes. Seriam necessários, no mínimo, 11 no DF, onde vivem mais de 2,6 milhões de pessoas. Há também fila para a radioterapia. Além disso, somente oito psicólogos estão disponíveis. ;Estamos aquém da nossa necessidade. Faltam recursos humanos;, admitiu o gerente de câncer da Secretaria de Saúde, Arturo Santana Otaño. O Hospital Universitário da Universidade de Brasília (HUB) também recebe parte dos pacientes, na tentativa de desafogar o Hospital de Base.
"Não quis parar de viver"
A advogada Verônica Maria de Almeida, 46 anos, é viciada em viver. Por isso, é também uma mulher precavida. Nunca descuidou da própria saúde. Mesmo antes dos 40 anos, ia ao ginecologista e fazia os exames necessários, anualmente. Pratica exercícios físicos desde sempre e não cultiva hábitos prejudiciais, como ingerir bebida alcoólica ou fumar. Talvez por isso tenha se assustado tanto quando recebeu o primeiro diagnóstico de câncer.
Hoje, seis anos depois da experiência inicial e ainda em tratamento por conta de um novo tumor ; em 2008 o câncer voltou e foi diagnosticada metástase nos ossos ; Verônica fala com firmeza e fé sobre a superação da doença. A advogada chama o tratamento de ;processo de cura; e jamais o tratou como um caminhar rumo ao fim. São certezas como essas que Verônica pretende compartilhar em um livro.
Em agosto, ela lançará a obra intitulada Câncer? Não. Sou de aquário. Ao longo de 102 páginas, Verônica dividirá com os leitores os bons e os maus momentos dos últimos anos. Estimulada por amigos e familiares, ela decidiu tornar pública a própria história.
Tudo começou em 2005, quando soube que a mama esquerda escondia um nódulo maligno. Com marido e dois filhos, ela se recusava a aceitar aquela notícia que soava com uma condenação à morte. Foi preciso retirar um pequeno quadrante do seio. Vieram as sessões de quimio e radioterapia. Passou a sentir muito sono e perdeu os cabelos. ;Durante todo esse tempo eu só me perguntava: ;Por que eu, se nunca fiz mal a ninguém?; Não achava justo.;
Melhora
Ao fim do tratamento, aos poucos, os cabelos começaram a voltar. O ânimo para viver também. Três anos depois, acreditando estar curada, Verônica mudou-se de Recife para Brasília. Aqui, em uma de suas caminhadas diárias, sentiu dores nas pernas. Quando consultou o médico, recebeu a triste notícia pela segunda vez. ;Eu achava que o câncer jamais voltaria. Mas o raio caiu duas vezes no mesmo lugar;, conta.
Foi constatada metástase óssea. Verônica passou a ver a vida de forma diferente, quando cogitou a possibilidade de não ver os filhos crescerem. Apaixonada por viagens, ela queria conhecer vários lugares do mundo. Não queria partir sem antes concretizar seus maiores sonhos.
Em 2008, mesmo doente, Verônica seguiu seus planos: escalou ruínas no Chile e esteve em Bariloche. ;O médico me proibiu. Disse que eu ficaria tetraplégica se levasse uma queda, porque meus ossos estavam prejudicados. Mesmo assim, não quis parar de viver. Preferi levar os meus dias da melhor maneira possível.;
Ao voltar de viagem, Verônica iniciou mais um tratamento. Passou por todo o processo novamente. Médicos queriam aposentá-la. A advogada, que trabalha em um banco público, não aceitou. ;A Dilma (Rousseff) tinha tido um câncer e estava trabalhando. O Alencar (José Alencar, então vice-presidente da República) também. Então por que eu não poderia?;. Em julho de 2010, ela retomou a atividade. Às vezes, fazia uma sessão de quimioterapia ; o que normalmente causa mal-estar ; e seguia para o trabalho, logo depois.
Atualmente, Verônica ainda toma medicamentos especiais para fortalecer os ossos e faz consultas médicas regularmente. ;Os últimos exames me deixaram muito animada. Alguns pontos sumiram, outros melhoraram. Eu sempre achei que podia viver mais. Ficar mais com os meus filhos. Andei careca, com peruca, escalei ruínas. Fiz tudo, menos desistir;.
Verônica leva a vida com fé. O amor ajuda a mantê-la firme. ;Minha filha me olhava e dizia: ;Mãe, você fica muito mais bonita careca;. Nada se compara a esse carinho;. Acima de tudo, Verônica, como muitos homens e mulheres que dividem suas vidas com o câncer, redescobriu a beleza de estar viva.