postado em 17/08/2011 07:34
Foram necessárias horas, até mesmo dias, de viagem para chegar a Brasília. Elas vieram de todos os cantos do país. Desceram de ônibus ; 1.520 no total ; trazendo consigo uma parte da terra onde nasceram. Sacolas imensas de plástico, recheadas com roupas simples, equilibravam-se sobre as cabeças das mulheres tão acostumadas com o peso da vida. Quando as trouxas ganhavam o chão do acampamento, em pleno centro de Brasília, os cabelos recebiam cobertura de chapéus de palha, femininos e com acabamento em flor.Ontem, houve um desfile de peles queimadas de sol, de sorrisos abertos e iluminados, porém carentes de cuidado, no Parque da Cidade. Ali, hospedam-se as participantes da Marcha das Margaridas, prevista para ocorrer hoje, na Esplanada dos Ministérios. Mais de 70 mil mulheres são esperadas para o maior encontro nacional de trabalhadoras rurais. Elas querem propor ações voltadas ao bem-estar de quem tira o sustento do campo.
O hotel improvisado era feito de tendas brancas de plástico, erguidas nos estacionamentos de 1 a 3. Algumas pessoas trouxeram colchões, outras contaram com a sorte. Em tempos de alta temperatura e baixa umidade, o calor não assustou. Pelo contrário. Houve quem reclamasse de frio. O cheiro dos banheiros químicos não atrapalhou a animação. Rostos masculinos também estavam por lá, mas sem tomar a frente do movimento.
Cada margarida conta um pouco da própria história sem precisar falar. Basta observar de perto as marcas do tempo. Pintadas de vermelho, as unhas de Maria de Jesus Quinto Teixeira, 54 anos, emprestam leveza às mãos marcadas pelo trabalho. Ela é quebradeira de coco babaçu, em Esperantinópolis, no Maranhão. Levou mais de 48 horas em um coletivo para chegar ao Distrito Federal.
Vida difícil
A maranhense começou no ofício aos 7 anos, repetindo assim a sina dos próprios pais. Nunca frequentou escola. ;A vida ensina;, ela diz. Maria casou-se aos 16. Teve o primeiro filho aos 19. Morou a vida inteira no mesmo lugar, uma casinha de taipa, feita de barro, palha e madeira, com energia elétrica, mas sem água encanada.
Mãe de 11 filhos ; três deles morreram ;, Maria de Jesus ficou emocionada ao chegar à capital do país. ;Até os 28 anos, eu só vivia para parir e dar de mamar. Não sabia nem que eu era mulher. Minha vontade era a do meu marido. Estar aqui hoje é renascimento;. ;Se soubesse como era a vida, tinha tido menos filhos, uns três só, para poder criar mais fácil;, refletiu. Todos os filhos de Maria estudaram até chegar à faculdade. ;Quebrei muito coco e comi muito arroz com ovo para eles chegarem até aí;.
Com 20 anos, Maria aprendeu a ler e a escrever. O avô ensinou as letras e os números. Assim, deu-lhe de presente uma passagem para o mundo. Depois disso, Maria envolveu-se com movimentos sociais. Quis educação, saúde, ser amada e respeitada. Hoje, planta macaxeira, feijão, melancia e manga. ;Tem manga de todo tipo. Esse povo daqui precisava ver;. Maria de Jesus quer falar com a presidente da República sobre agrotóxicos, trabalho escravo e infantil, além de Bolsa Família. ;Nossa razão de existir é lutar;, explicou.
Evolução
Ela não está sozinha nas reivindicações. Mais de 70 mil vozes somam-se à sua. Entre elas, a de uma verdadeira Margarida. Margarida Santos, 52 anos, veio de Pernambuco. Demorou três dias para chegar. Ela quer dizer à presidente Dilma Rousseff e ao povo de Brasília: ;Eu sou gente;. Margarida é trabalhadora rural desde os 8 anos. As mãos pequenas de criança acostumaram-se a semear milho e feijão. Aprenderam também que os frutos vêm do esforço. ;Meus filhos cresceram ajudando a criar galinha e gado. Nenhum fez faculdade. Precisamos de dia melhores;, disse.
Já a piauiense Luzia da Rocha Miranda, 51 anos, viajou 24 horas para estar aqui. Desde os 16, ela trabalha no campo. ;Tudo é difícil para quem trabalha na roça. Mas a gente não é de lamentação. O que se perde em um ano, se recupera no outro, na lavoura e na vida;, ensinou. Luzia dedicou a vida toda à plantação de arroz, na beira de um rio. Hoje, frequenta a escola. Orgulha-se de aprender a operar o computador. ;Quem transformou a minha vida foi o movimento social. Quero vencer;.
Luzia veio a Brasília pela primeira vez. Gostou do que viu. Mas achou a cidade, literalmente, fria. ;Tá fazendo um frio danado aqui, hein?;, comentou Luzia, que está acostumada a temperaturas superiores aos 35;C. ;Aqui é muito evoluído. Fiquei impressionada;, elogiou. Luzia pretende guardar tudo na lembrança, para contar o que viu aos seis filhos.
A face da juventude
Faces jovens também se misturavam às mais experientes, no acampamento da Marcha das Margaridas. Mônica Silva Ramos, 25 anos, de Japoatã, em Sergipe, poderia ser a musa das margaridas. Jovem e bonita, chamava a atenção dos poucos homens do local. Filha de lavradores, faz parte do movimento jovem de seu Estado. Divide as horas do dia entre a colheita, para ajudar a família, e a faculdade de Educação no campo, um curso novo criado graças às reivindicações de sindicatos rurais do Nordeste. Quer ser professora. ;Minha mãe trabalhou em uma realidade muito diferente da minha. Por isso estou aqui hoje, para lutar por um futuro ainda melhor;, justificou.
Mulheres de todo o país, com diferentes perfis, desembarcaram ontem no acampamento. Maria do Carmo da Silva, mais conhecida como Maria Chocolate, 48 anos, veio de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Ela não é trabalhadora rural, mas se identifica com a luta das margaridas. Maria do Carmo, a mãe e sete irmãs cresceram com a violência dentro de casa. ;Sofri apanhando e vendo as mulheres da minha casa sendo espancadas. Outras muitas morreram. Não podem falar. Estou aqui para lembrar a violência contra a mulher. Só pode falar de fome quem a viveu;, argumentou.
Projeto social
Na tentativa de proteger mulheres e crianças da comunidade onde vive, Maria Chocolate criou um projeto social no quintal de casa. É contadora de histórias e, com outros voluntários, oferece oficinas e aulas de esporte a 50 meninos e meninas, além de dar apoio às mães. ;Eu alfabetizei a minha mãe, quando ela já estava idosa. Há 10 anos, ela morreu. Gostaria que ela estivesse em Brasília comigo, para ver aonde uma mulher chegou;, emocionou-se, ao se referir à presidente Dilma Rousseff. Mesmo calçada com sandálias baixas e gastas, sujas de terra, Maria Chocolate sentia-se elegante. ;Hoje, me sinto como se estivesse de salto alto;, disse.
Luta como inspiração
A Marcha das Margaridas ocorre a cada quatro anos e está em sua quarta edição. A maior mobilização de mulheres do campo e da floresta do Brasil tem esse nome como uma forma de homenagear a trabalhadora rural e líder sindical Margarida Maria Alves, símbolo da luta feminina por terra, trabalho, igualdade, justiça e dignidade. Ocupou durante 12 anos a presidência do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alagoa Grande, na Paraíba. À frente da entidade, fundou o Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural. Sua trajetória sindical foi marcada pela luta contra a exploração, pelos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, contra o analfabetismo e pela reforma agrária. Margarida Alves foi assassinada por usineiros da Paraíba, em 12 de agosto de 1983. O movimento, que ocorre em Brasília, tem o apoio da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e outras entidades sindicais.
Prepare-se
Marcha das Margaridas
Local de concentração: Parque da Cidade, próximo ao Pavilhão de Exposições.
Horário: Hoje, a partir das 6h, no Parque da Cidade. Por volta das 8h30, elas devem sair em passeata rumo à Esplanada dos Ministérios, pela Via N1, onde pretendem ocupar três faixas.