Cidades

Como nasce uma cidade: Revolução na terra vermelha

postado em 27/08/2011 12:39
A fundação do Congresso Nacional começou a ser feita no fim de outubro de 1957. A foto é de 1958, quando já havia até uma coluna do Palácio do Planalto fincada no chão

A terra se movia com crescente nervosismo e contínuas mutações. A paisagem da noite anterior não era a mesma do dia seguinte. O caminho de volta para casa podia não ser o mesmo da ida, tal a rapidez com que o ambiente sofria alterações, como se as eras de transformação da Terra tivessem se concentrado num só lugar e num só tempo. Visto de longe, o intenso movimento de terra sugeria um vulcão expelindo lavas de poeira. Só na Praça dos Três Poderes, o aterramento do terreno moveu 700 mil m; de terra, o que corresponde a 140 mil viagens de caminhão. Como se o Brasil estivesse convulsionado em revolução, jornais e revistas de Nova York, Beirute, Buenos Aires, Bonn, Oslo, Hamburgo, Bruxelas e Paris publicavam reportagens e artigos sobre ;uma das maiores obras não só do século 20, senão de todos os tempos;, escreveu o argentino La Nación.

O açodamento de Juscelino ; construir, inaugurar e transferir a nova capital no seu governo ; tinha um pé na sensatez: ou ele começava e terminava o que havia se proposto, ou dificilmente seria feita a mudança da capital. Como declarou o editor José Olympio, dono da editora homônima: ;Ou vai ou racha; (Veja íntegra na página ao lado). Um ano depois de visitar pela primeira vez o sítio da cidade, Juscelino sancionava a Lei n; 3.273, que fixou em 21 de abril de 1960 a data da transferência da capital do Brasil.

Em um ano, Oscar Niemeyer já havia projetado: o Catetinho, o Palácio da Alvorada, o Brasília Palace Hotel, a Igrejinha de Fátima, o Congresso Nacional, as habitações da Fundação da Casa Popular, o modelo-padrão dos blocos das superquadras, o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal Federal e a Escola Júlia Kubitschek (que até então não tinha esse nome). Mas ainda não havia se mudado para Brasília, o que só aconteceria em meados de 1958. Os primeiros projetos de Niemeyer para Brasília foram feitos no escritório da Novacap no Rio de Janeiro.

Para responder às denúncias de que não havia material de construção para as obras, a Novacap informava, a 10 de agosto de 1957, que o básico estava sendo obtido nas proximidades de Brasília. A areia ou era retirada ou da lavagem do cascalho que existia em larga escala na região ou sugada com dragas e escavadeiras em bolsões do Córrego Bananal. Assegurava, também, que uma olaria já estava em funcionamento para a fabricação de tijolos maciços e de tijolos furados. ;Para fabricar os tijolos, relatava a revista Brasília, é utilizada argila de grande plasticidade;.

Não foi assim tão fácil quanto a Novacap propagava. O engenheiro Cláudio Oscar de Carvalho Sant;Anna (1925-2009), um dos donos da Kosmos Engenharia, chegou a Brasília em agosto de 1957 com a disposição de participar da construção das superquadras. ;Verificamos que a cidade não tinha absolutamente recurso nenhum. Não havia uma olaria, não havia pedra britada, não havia areia, não havia tijolo, não havia absolutamente nada;, ele contou ao Arquivo Público do Distrito Federal. Dois meses depois, a revista Brasília publicava a foto de uma olaria da Novacap em atividade ; fileiras de tijolos secando ao sol. As construtoras se viravam como podiam. ;A Kosmos, por exemplo, teve que comprar máquinas para fazer os blocos e fazia então um pedrisco e, com cimento e areia, fazia o bloco de cimento. Durante a fase inicial, nossas construções foram feitas com bloco de cimento;, contou Cláudio Sant;Anna, em longo e detalhado depoimento.

Pré-história
Naqueles primeiros meses de efetivo começo das obras, havia carência de pedra britada. ;No Rio de Janeiro, onde eu tinha a minha experiência de trabalho, a pedra britada é de altíssima qualidade, porque é produzida à base de granito. Toda a serra do Rio é constituída de granito e gnaisse (rocha formada há 600 milhões de anos, resultante da colisão das placas tectônicas). O gnaisse é um produto fácil de ser quebrado, a pedra é fácil de ser britada, e tem uma resistência muito boa.; Em Brasília, era diferente. Não havia nenhuma jazida de granito ou de gnaisse. ;Existiam os afloramentos de quartzito, duríssimo, e calcário daquelas fábricas de cimento em Sobradinho.;

Para as primeiras concretagens dos blocos das superquadras, a Kosmos usou um recurso pré-histórico: empreitava operários para quebrar a pedra à mão, (a chamada pedra marroada), e comprava o material em caixotes de 1m;. ;Parecia o tempo da construção das pirâmides do Egito;, compara o engenheiro. As pedras chegavam em blocos graúdos e era preciso, então, picotá-las. Sant;Anna instalou uma britadeira no canteiro de obras. ;Mas o quartzito era tão duro que as mandíbulas do britador se desgastavam em 24 horas. À noite, quando ele trabalhava, a gente via aquelas fagulhas saindo da pedra dura, pareciam fogos de artifício.;

Achou-se, então, uma saída inusual na construção civil brasileira, ainda segundo Cláudio Sant;Anna: usar o cascalho tirado dos rios. As dragas sugavam a areia do leito das águas, e em seguida ela era peneirada. A parte fina era usada como areia e o seixo rolado era utilizado na fabricação do concreto. Para conseguir a própria areia, os operários da Kosmos Engenharia desceram o Rio Corumbá, numa jangada feita com tambores vazios de óleo diesel, até localizar pontos de razoável profundidade onde uma draga pudesse ser montada. ;Era um esforço muito grande;, relata Sant;Anna.

Oscar Niemeyer acabara de visitar Itália e França. Estava sob o efeito que tinham lhe causado a Praça de São Marcos e o Palácio dos Doges, ambos em Veneza, e a Catedral de Chartres, em Charthes, ;obras que causam um impacto indescritível pela beleza e audácia com que foram realizadas, sem contribuírem para a emoção razões técnicas ou funcionais;, escreveu o arquiteto em Minha experiência em Brasília. ;É a beleza plástica apenas que atua e domina, como uma mensagem permanente de graça e poesia;, revelou Niemeyer, deixando muito claro a seus críticos que sua intenção primordial, ao projetar as obras de Brasília, era a beleza, não a funcionalidade.

Três triângulos sustentam a laje também em forma triangular da Igrejinha moderna

Em outubro de 1957 havia na cidade livre:
; 13 hotéis
; 5 agências bancárias
; 4 agências de companhia de aviação
; 4 farmácias
; Igrejas de 4 religiões
; 2 churrascarias
; 2 serrarias
; 2 bombas de gasolina
; Vários restaurantes
; Muitos açougues
; Padarias
; Armarinhos
; Serrarias
; Alfaiatarias
; Casas de automóveis
; Casas de peças de automóveis
; Oficinas mecânicas
; Carpintarias
; Fábrica de móveis
; Um mercado
; Estação Rodoviária
; Consultório médico
; Ao todo, 340 estabelecimentos comerciais

LEITURAS
; A epopeia da construção de Brasília, Adirson Vasconcelos, Edição do Autor, 1989
; A igrejinha de Oscar Niemeyer, Francisco Lauande, www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/11.125/3888
; Diário de Brasília, 1957/1958, Presidência da República
; Guiaarquitetura Brasília, Sylvia Ficher e Geraldo Sá Nogueira Batista, Empresa das Artes
; Guia de Urbanismo, Arquitetura e Arte de Brasília, Andrea da Costa Brata e Fernando A.R.Falcão
; Igrejinha, cinquenta anos, Edite Antão de M. Leal, www.igrejinhadefatima.org
; Mil dias para uma cidade, Brasília, José Adirson de Vasconcelos, Edição do Autor, 1963
; Minha experiência em Brasília, Oscar Niemeyer, Editorial Vitoria
; Programa de História Oral do Arquivo Público do Distrito Federal
; Revista Brasília, números 8, 9 e 10, Novacap

AGRADECIMENTOS
; Arquivo Público do Distrito Federal

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