Cidades

BRs erguidas durante construção da capital foram fundamentais para o país

postado em 10/09/2011 08:00 / atualizado em 19/10/2020 17:16

A rodovia que ligou o Cerrado à Amazônia  segue em extensa linha reta. As curvas são  raras e majestosas
A construção da capital foi a mais vistosa das conquistas brasileiras nos anos 1950, mas não nasceu sozinha. A concentração de máquinas, operários, arquitetos, engenheiros, artistas, a visita constante de políticos, jornalistas e celebridades estrangeiras reduziu o brilho de outra aventura épica que se desenvolvia ao largo do sinal da cruz, mas que fazia parte do conjunto da obra de interiorização do território continental brasileiro: a construção de uma estrada que ligaria, pela primeira vez, o extremo norte ao restante do país, Belém do Pará a Brasília, a Amazônia ao cerrado, o caboclo ao sertanejo, a borda ao coração do Brasil.

Belém-Brasília e Bernardo Sayão são quase sinônimos num dicionário de feitos épicos da história recente do país. A rodovia ganhou o nome do engenheiro, um ano depois de sua morte num clarão aberto para dar passagem à estrada. A linha que parte de Anápolis, sobe Goiás, avança pelo Tocantins (que à época não existia), invade o Maranhão e desemboca no Pará estava traçada no peito do engenheiro desde que, na década de 1940, ele liderou a Marcha pelo Oeste, empreendimento de Getúlio Vargas para ocupar o interior do território brasileiro.

Caboclos mostram a espécie de cipó que armazena água. Sayão (no centro da foto) aterrissa no meio da selva
Mais de uma década antes da eleição de Juscelino Kubitschek e de sua decisão de construir e mudar a capital, Bernardo Sayão já havia aberto uma estrada entre Ceres e Anápolis, 142km pioneiros, desbravados em 1944. Doze anos mais tarde, vice-governador eleito de Goiás, o engenheiro continuava tentando ligar os pontos da extensa linha reta que aproximaria Brasília de Belém, o Norte do restante do país. Brasília ainda era vaga promessa de Juscelino, a Companhia Urbanizadora de Brasília (Novacap) ainda nem havia sido criada, e Bernardo Sayão já estava em Belém do Pará projetando um fio de estrada sobre os mistérios da floresta e a claridade do cerrado.

Em carta a um amigo, Mário Braga, datada de 26 de abril de 1956, ele relata: “Cá estou pela primeira vez, saboreando por antecipação, o que será um futuro difícil de prever, a ligação Goiás-Belém. Este porto, que é o maior do sententrião brasileiro, é impressionante pela situação em que se encontra. Cercado de água em abundância ou mata densa, como dizem os aviadores da selva bruta. A selva é tão fechada e alta, que ninguém sabe o que está sob a mesma; e, se cair um avião, por maior que seja, ela abre o o seio, recebe-o e torna-se a fechar, para a curiosidade mundana.”

Ao escrever suas memórias sobre os feitos do período, Juscelino invoca para si a ideia de abrir a Belém-Brasília. Não se pode dizer que ele não tenha imaginado a ligação entre os dois pontos, mas se esqueceu de dizer que Sayão também cultivava o mesmo projeto e já o tinha executado, num pequeno trecho, nos anos 1940.

Escreve JK em Por que construí Brasília: “Lançadas as bases de Brasília, era tempo de estender o olhar pelo mapa e visualizar, mais uma vez, a presença do grande cruzeiro de estradas, que faria a integração nacional. Era a velha obsessão que me perseguia. A ligação do Brasil por dentro! Quando sobrevoava a Amazônia, figurava na mente a linha reta que vincularia Brasília a Belém. Seria uma linha, rasgada na floresta e estendida sobre rios caudalosos, que levaria a civilização a regiões só palmilhadas por índios. Havia chegado a hora de transformar a obsessão em realidade. Ia surgir a Belém-Brasília”, escreveu à página 97.

A rigor, o risco imaginário ligando distantes Brasis havia sido esboçado no Plano Geral de Viação Nacional, elaborado pelo primeiro governo de Getúlio Vargas, antes do Estado Novo. Era a Rodovia Transbrasiliana, destinada a conduzir Belém do Pará a Livramento, no Rio Grande do Sul, cortando assim os estados do Pará, do Maranhão, de Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Quase 6 mil km de estrada, de uma ponta à outra do país. Mas embrenhar-se na Amazônia continuava sendo um vago projeto contido nas intenções.

Se Juscelino não foi o primeiro e único a idealizar a Belém-Brasília, como fica sugerido em suas memórias, é certo que ele deu a Sayão as ferramentas para a empreitada. Em 19 de maio de 1958, criou a Comissão Executiva da Rodovia Belém-Brasília, a Rodobras, empresa responsável pela construção dos 2,2 mil km de estrada, dos quais 550 eram de selva até então impenetrável. Para vencer a imponência selvagem e emaranhada da Amazônia foi necessária uma frente de mateiros e topógrafos que a imprensa designou à época de “suicidas”, dados os riscos que aqueles homens corriam diante das muralhas verdes que escondiam feras, índios e doenças.

Como relatou o repórter Alberto Homsi, de O Globo, em setembro de 1958: “O que esse punhado de brasileiros está fazendo é difícil de descrever. Estão, à custa de imensos sacrifícios, descobrindo o Brasil para os brasileiros. Ali existe de tudo, inclusive batalhões “suicidas”, constituídos por aqueles que, como os topógrafos, avançam em picadas vinte ou mais quilômetros dentro da mata e ali passam meses sem ver a luz do sol, aguardando os suprimentos e as mensagens que lhes cheguem de paraquedas”. Boa parte dos desmateiros eram garotos nordestinos, de 18 a 20 anos.

3,4 mil homens
Dez meses antes, em 7 de novembro de 1957, Juscelino havia sobrevoado o traçado da rodovia, vindo de Belém em direção ao Rio de Janeiro. Estavam com ele Bernardo Sayão e o superintendente do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, Waldir Bouhid. A essa altura, a ponta norte da estrada já estava aberta e asfaltada em 40km, entre Belém e Guamá e, na ponta sul, já tinham sido cortados e encascalhados 700km a partir de Anápolis em direção ao norte.

A obra consumiu a força de 3,4 mil homens, em três frentes de trabalho (com bases em Belém, Imperatriz -MA e Anápolis), mais de 1,5 mil máquinas, entre caminhões, tratores, aplainadeiras e solidificadoras e onze construtoras. Duas frentes de trabalho, a de Imperatriz e a de Anápolis, partiram uma em direção à outra, e o encontro das duas passou a ser esperado com a ansiedade de quem aguarda o primeiro pouso na Lua.

Para a turma que saía do Centro-Oeste, era moleza. Para a que saía do Norte, a partir de Imperatriz- MA, era uma tarefa incomparavelmente mais árdua do que a de construir palácios no cerrado. “Essa é a frente de trabalho mais rude e difícil que se possa imaginar. É toda a agressividade da selva da Amazônia jamais penetrada pelo civilizado que está sendo vencida pelo esforço patriótico dos técnicos e trabalhadores brasileiros”, escreveu Vaitsman.

Se não foi fácil enfrentar a floresta, não menos difícil foi conseguir juntar as duas pontas da estrada. Houve um desvio de quilômetros, conforme relata a revista virtual O Empreiteiro (). Foi preciso demorada revisão de trajeto, a partir de levantamentos aéreos, para finalmente se conseguir a ligação. É este, aliás, o nome de uma vila onde se deu o encontro das duas frentes, Ligação, no município de Dom Eliseu, no sul do Pará.

Se para os do Sul e do Sudeste, a Belém-Brasília era uma “estrada das onças”, destinada a cortar territórios inabitados, para os do Norte era a primeira ponte entre os insulados e o restante do país. A Belém-Brasília mudou o lugar de moradia dos nortistas — da rarefeita demografia ribeirinha à intensa, conflituosa, ecologicamente incorreta e urbanamente eufórica civilização à beira do asfalto. Dezenas de cidades foram surgindo a partir da rodovia. Ao todo, segundo estimativa da extinta Rodobrás, a influência da estrada se estendeu por 4,8 milhões de km².

Três meses antes da inauguração de Brasília, a Caravana da Integração Nacional percorreu toda a estrada. Cinquenta e seis carros, de fabricação brasileira, (da Willys, da Vemag, da Volkswagen, da Chevrolet e da Mercedes Benz) chegaram à nova capital. Enfrentaram vias pavimentadas, trechos quase intransitáveis, dormiram em barracas, atravessaram rios em balsas e, dez dias depois, chegaram a Brasília.

A estrada existia. Num clarão no meio da selva, em 15 de janeiro de 1959, 16 dias antes do encontro das duas frentes de trabalho, havia tombado o engenheiro Bernardo Sayão, que hoje dá nome à rodovia. A estrada e o homem encadeados na história.

LEITURAS
» Dez dias na Belém-Brasília, Afranio Melo, Cadernos Belém-Brasília, Rio de Janeiro, 1960
» Diário de Brasília, Serviço de Divulgação da Presidência da República, 1960
» Meu pai, Bernardo Sayão, Léa Sayão, Edição do Autor, 1994
» Por que construí Brasília, Juscelino Kubitschek, coleção Brasil 500 anos, Senado Federal, Brasília, 2000
» Revista O empreiteiro (www.revistaoempreiteiro.com.br)
» Revista Quatro Rodas, número 61, agosto de 1965
» Rodovia Belém-Brasília, a rodovia da unidade nacional, e suas implicações de ordem técnica, econômica e política, Comissão Executiva da Rodovia Belém-Brasília, 1960
» Rodovia da Unidade Nacional: o processo de urbanização no entorno da Rodovia Belém-Brasília, Rafael Araújo Pacheco, trabalho final de graduação em geografia na Universidade Federal de Uberlândia, 2009

LEIA EM 24 DE setembro DE 2011
A terraplanagem da Esplanada está quase concluída. Chega à cumeeira o primeiro bloco de apartamentos. Os institutos de pensão disputam quem vai inaugurar o primeiro edifício residencial da Asa Sul. As superquadras começam a tomar a forma idealizada por Lucio Costa.

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