Cidades

Arquiteta e filha de Lucio Costa fala sobre a morte de Augusto Guimarães

postado em 20/09/2011 14:59
Maria Elisa Costa*

Conheci o Dr. Guimarães na casa de Correias, dias depois do acidente na Rio-Petrópolis que, de uma hora para outra, levou embora minha mãe. Lembro bem de ver da varanda a figura dele subindo a escada do jardim, e do seu olhar, de alguém que quer tanto ajudar, mas não sabe o que fazer, impotente diante da violência daquele golpe.

No outro extremo, em 1998, meses antes da sua morte, meu pai recomendou que eu incumbisse o Guimarães de cuidar de tudo quando chegasse a hora da partida ; e assim foi.

Estranho, começar esse texto desta maneira ; é como se eu sentisse a necessidade de registrar, antes de qualquer coisa, a qualidade e a confiança mútua da relação entre os dois.

Mas quem é esse Dr. Guimarães? Como se deu o encontro dele com o Dr. Lucio? Passo a palavra ao próprio:

"Nos anos 40, os Guinle criaram a Servix Engenharia, que foi incumbida de construir os prédios do Parque Guinle. Numa visita à sede da construtora, conheci o engenheiro Augusto Guimarães Filho. Com seu jeito acolhedor, franco, aberto e interessado, se destacava dos demais, na frieza daquele ambiente, como uma presença humana ; simpatizei com ele. Algum tempo depois, passou a atuar como engenheiro chefe da obra do Parque Guinle. Em seguida, desenvolveu outro projeto meu, desta vez para a sede do banco Aliança, dos irmãos Coutinho, no centro da cidade. Desse convívio continuado me ocorreu, quando ganhei o concurso de Brasília em 1957, propor ao Dr. Israel Pinheiro que confiasse a ele a direção do Departamento de Urbanismo da Novacap, criado para desenvolver o Plano Piloto. O escritório funcionou na sobreloja do ministério, e o Dr. Guimarães deu conta da tarefa com exemplar dedicação."

Só que o convite que recebeu do Dr. Lucio para desempenhar essa tarefa deixou o Dr. Guimarães mudo por dois dias. Não conseguia responder, tal o susto e a aflição com a responsabilidade enorme que significava transpor para o chão de verdade aquele desenho em escala de 1/25.000. Passados os dois dias, diante da cobrança ; "Eu lhe fiz um convite, você nem para me dar uma resposta?" ; a resposta foi sim.

Olhando Brasília hoje, uma pergunta insiste em vir para o primeiro plano: e se não fosse o Guimarães? Quanto mais tempo passa, mais claro fica para mim que, de fato, nenhuma outra pessoa teria condições de assumir a incumbência.

Porque havia, no Guimarães, uma convergência ímpar: profissionalmente, tinha objetividade de engenheiro com sensibilidade de arquiteto, sempre se interessou pela arquitetura moderna brasileira e era a favor da mudança da capital; mas o ingrediente determinante, o que permitiu que o trabalho fluísse como fluiu, foi a relação pessoal, o ter aprendido a conhecer e a lidar com o Dr. Lucio, profissional e pessoalmente.

Para conduzir o trabalho, com o bom senso que sempre foi sua marca registrada, percebeu que era preciso se ater ao que de fato importasse, e descomplicar as coisas ; não havia lugar nem para grandes discussões, nem para grandes hesitações.

Assim, a primeira coisa foi deixar claro para a pequena equipe que comandava, que o Plano Piloto era, definitivamente, aquele escolhido pela comissão julgadora. O projeto não estava mais em discussão: tratava-se simplesmente de desenvolvê-lo. Por outro lado, como no caso de Brasília, desenvolvimento do plano e construção não foram etapas sucessivas, mas concomitantes, era indispensável resolver os imprevistos em tempo útil e ; sempre ; com a palavra final do Dr. Lucio.

E Dr. Guimarães soube lidar com a pessoa do Dr. Lucio com uma competência e uma sensibilidade impecáveis. Houve dificuldades, houve problemas, mas tropeços não existiram. Sempre se chegou a uma solução: o objetivo era tudo dar certo.

A própria figura dele, com seu guarda-pó branco, era o oposto da afobação ou da correria que a ideia da mudança da capital em três anos pode sugerir. E nunca houve atraso de nenhuma informação; tudo aquilo calculado ponto por ponto, curva de nível por curva de nível, os terraplenos, as vias, os trevos, o parcelamento, a locação dos edifícios ; e tudo com calculadora Facit manual (a primeira elétrica foi um sucesso) ;, as três coordenadas com todas as suas decimais transmitidas pelo malote ou pelo rádio. E mais os viadutos, a Plataforma Rodoviária, a Torre de TV...

A postura dele que, sendo firme e correta, era ao mesmo tempo bem humorada e impregnada de imensa e genuína fidelidade ao Dr. Lucio, tornou-o, por designação do próprio, a sua segunda pessoa, o interlocutor em todos os encontros e reuniões, tanto com Dr. Israel Pinheiro como com o Presidente ou com quem fosse ; a confiança era total. Ele era ao mesmo tempo protetor e "filho" do Dr. Lucio ; e a Brasília que existe é resultado, exatamente, da qualidade dessa parceria.

Radicado desde sempre em Niterói, dr. Guimarães sempre se ateve ao "backstage". Só nos últimos anos se deu conta de que era chegada a hora de sair da sombra e deixar registrado seu testemunho único ; infelizmente, não concluiu o livro que escrevia: recebi hoje (domingo), com imensa tristeza, a notícia do seu falecimento, ontem (17 de setembro de 2011).

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*Arquiteta, filha de Lucio Costa, trabalhou na equipe que desenvolveu o projeto do Plano Piloto

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