postado em 24/09/2011 08:40
Há pelo menos um (certo) consenso entre arquitetos e urbanistas que investigam erros e acertos do projeto de Lucio Costa para Brasília: as superquadras são o que de melhor o urbanismo moderno produziu para a nova capital. Dito de modo acadêmico: ;Ao se considerar as soluções urbanísticas distintivas de Brasília, aquela de maior sucesso e mais consagrada em termos de organização físico-espacial é encontrada, sem dúvida, nas chamadas superquadras, grandes quarteirões de 280mx280m cada um, distribuídos ao longo das asas Sul e Norte;, escreveram Sylvia Ficher, Francisco Leitão, Geraldo Nogueira Batista e Dionísio Alves de França em Blocos Residenciais das Superquadras do Plano Piloto de Brasília.Lucio Costa tinha consciência, tanto quanto Juscelino, de que a superquadra era fundamental para a transferência e consolidação da nova capital. Além disso, informa a arquiteta Maria Elisa Costa, sua filha, sabia que a ideia não serviria exclusivamente a Brasília, ;poderia ser empregada alhures;. Passado meio século, as construtoras tentam imitar, sem sucesso, o projeto original. ;A meu ver, diz Maria Elisa, a superquadra é mesmo um achado. Conseguiu introduzir um modo novo de convívio urbano que, embora inovador, não assustava as pessoas;. Ela observa que a parte que Lucio Costa mais detalhou no projeto do Plano Piloto foi ;a sequência das áreas de vizinhança ao longo do Eixão, que ele chamava de Eixo Rodoviário-Residencial;.
Para começar logo a construir as superquadras e visto que não era de competência da Novacap erguer moradias para os habitantes da nova capital, o presidente Juscelino Kubitschek encontrou uma saída à mão: usar os recursos dos milionários institutos de aposentadoria, que à época respondiam pelos benefícios previdenciários dos trabalhadores públicos e privados. Como explica Luis Fernando Tamanini, em Memória da Construção: ;Esses institutos viviam e sobreviviam de uma receita que provinha de três fontes: do desconto mensal feito no salário do trabalhador, da contribuição compulsória do patrão e de uma contribuição do governo igual à soma das outras duas.;
O governo nunca havia pago a sua parte. Juscelino propôs saldar as dívidas com os institutos, mas o dinheiro teria de ser usado para construir os blocos das superquadras. O patrimônio construído pertenceria às instituições, mas seriam arrendados à União que os destinaria aos servidores públicos transferidos para Brasília, ainda segundo Tamanini. Foi desse modo que, em agosto de 1957, chegavam a Brasília os primeiros caminhões, operários e engenheiros que viriam erguer as primeiras superquadras da nova capital.
No mesmo mês oito, o engenheiro e empresário Cláudio Sant;Anna chegou à cidade em construção. Dono da Kosmos Engenharia, sediada no Rio de Janeiro, veio para erguer blocos de apartamentos do IAPC (ver glossário na página ao lado). Único empreiteiro que morou desde então e até o fim da vida em Brasília, Sant;Anna foi o primeiro a concluir um bloco de apartamento, na 106 Sul, em junho de 1959. O feito mereceu festa com a presença do presidente da República e placa de bronze nas proximidades do edifício. ;Foi um churrasco muito bonito, com toalha de linho, com mesas decoradas e tudo.;
Quem também participou da construção das primeiras superquadras foi o arquiteto João da Gama Filgueiras Lima, o Lelé. Recém-formado, desenhista do IAPB, no Rio de Janeiro, quis vir para Brasília quando poucos se dispunham a largar o mar para se enfurnar no interior desconhecido. Lelé veio executar os projetos de Oscar Niemeyer para a 108 Sul. Conta que, por precaução, recolhia todas as armas dos candangos recém-chegados. ;Havia as coisas mais estranhas, revólveres antigos, punhais e até um bacamarte.;
Um dos relatos mais detalhados do que foram os primeiros meses de acampamento na Asa Sul são de Manuel Mendes, funcionário do Ipase, mais tarde jornalista. Mendes chegou a Brasília em novembro de 1957. O futuro chefe do almoxarifado do instituto instalou-se no canteiro de obras ; ou seja, no ;cerrado contínuo e denso;,como escreveu em Meu testemunho de Brasília. As quadras ainda não estavam divididas, existiam apenas nos marcos deixado pela equipe de topografia. Mendes lembra-se do que viu quando desceu no lugar onde seria construído o primeiro bloco de uma superquadra. ;A imagem que tinha era a de estar na retaguarda de um campo de batalha;.
Somente três meses depois, no final de fevereiro de 1958, foi que o primeiro bloco do Ipase começou, efetivamente, a ser construído. A demora devia-se à inteira precariedade do lugar. Era preciso começar tudo do zero, como se todos ali tivessem de reinventar o mundo. ;Como não havia eletricidade em Brasília, cada acampamento tinha de instalar seu próprio grupo gerador para mover serras, betoneiras, vibradores, guinchos.; Uma semana depois de conseguir instalar o gerador, o Ipase começava a cavar buraco para a fundação do atual bloco C (à época bloco 9) da 208 Sul.
Os institutos disputavam quem primeiro chegava à cumeeira, concluía a alvenaria, inaugurava o bloco e, claro, trazia Juscelino para as comemorações de cada um dos feitos. Nessa disputa, flagrou-se uma esperteza nada elogiável, segundo contam testemunhas daqueles tempos. ;Os blocos tinham (têm) seis pavimentos, erigidos sobre pilotis. Para se chegar à cumeeira, deveriam ser concretadas sete lajes. Foi aí que os engenheiros do IAPB aplicaram o golpe: amarraram uma laje sim e outra não. Com apenas quatro lajes concretadas, eles estavam na cumeeira;, relata Manuel Mendes. A falcatrua deu-se no bloco K da 108 Sul, segundo Mendes. Apesar dos protestos, houve comemoração com churrasco.
A presença dos institutos de pensões nos primeiros anos de Brasília foi tão significativa que, durante certo tempo, da construção à consolidação da cidade, os brasilienses identificavam os blocos das superquadras não pelos número e letras, mas pela sigla da instituição que a construiu. Dizia-se ;moro no Iapb;, ;vou me mudar para o Iapi;;Em 1964, os institutos foram fundidos na Previdência Social mas, em Brasília, eles ficaram na memória afetiva dos candangos. Muitos deles vivem nas superquadras que ajudaram a erguer, como o acriano Renizio Marcellino da Silva, de 81 anos, que foi chefe de escritório do Iapetec. Renízio chegou em março de 1958, e encontrou uma Asa Sul em estado de natureza bruta.
Apenas alguns blocos do IAPB surgiam na paisagem; e uma ou outra fundação começava a ser feita. A Revista Brasília, do mesmo mês, confirma o depoimento de Renízio. As superquadras começaram a ser construídas no começo de 1958. Em agosto do mesmo ano, a Fundação da Casa Popular inaugurava 50 unidades residenciais na 708, 709 e 710 Sul. Com elas prontas, Oscar Niemeyer fechou o escritório no Rio e se mudou para Brasília com sua equipe e amigos que convocou para lhe fazer companhia.
A fartura de monumentos arquitetônicos, o desenho impositivo do Plano Piloto, com seus eixos e asas, a saga da construção, tudo junto, ofuscou a riqueza urbana da superquadra. A excepcional criação (ou aprimoramento de uma ideia moderna) de Lucio Costa ficou ;quase esquecida, anônima;, escreveu Alfredo Gastal, superintendente do Iphan, na apresentação de A invenção da superquadra, de Marcílio Mendes Ferreira e Matheus Gorovitz.
Embora a palavra superquadra esteja nos mais consultados dicionários brasileiros, o Houaiss e o Aurélio (veja verbete na página ao lado) como sendo uma palavra criada em Brasília ou a partir de Brasília, ela já era utilizada no século 19 para designar o superblock americano, ensina a professora Sylvia Ficher, da faculdade de arquitetura da Universidade de Brasília (UnB). Quatro superquadra compõem uma unidade de vizinhança, solução urbana que vinha sendo desenvolvida desde a década de 1920. Mas foi Lucio Costa, em Brasília, que garimpou a pedra bruta e lhe deu vida.
SUPERQUADRA, NO DICIONÁRIO
No Houaiss:
Superquadra [De super %2b quadra] S.f. Bras. DF Área residencial aberta ao público, em contraposição a condomínio fechado, com uma única entrada para veículos, emoldurada por larga faixa verde densamente arborizada, com edificações de gabarito uniforme de seis ou três pavimentos sobre pilotis livres, e equipamentos de uso comum, como playgrounds e escolas [Em Brasília, ficam situadas em quatro sequências contínuas, ao longo do eixo rodoviário.
No Aurélio:
Superquadra s.f. (C1960) área residencial urbana, aberta, constituída por blocos de apartamentos, escolas, playgrounds, zonas ajardinadas etc., e na qual o tráfego dos veículos se acha separado do trânsito de pedestres (as s. de Brasília) . ETIM super %2b quadra;