Adriana Bernardes
postado em 22/10/2011 08:15
Exigência de propina, direcionamento de licitações e até furto de combustíveis. Esse é um retrato em três por quatro da corrupção e do descaso com o bem público que ocorriam dentro do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran). As irregularidades começam a vir à tona após a análise de contratos emergenciais e de processos de licitação executados pela autarquia nos últimos dois anos. E os absurdos não param por aí. O órgão encarregado de exigir que o condutor circule com os documentos do carro em dia não cumpria com as próprias obrigações. No começo deste ano, dos 235 veículos oficiais, mais da metade (141) rodava com o licenciamento vencido, alguns deles desde 2007. Motivo? Falta de pagamento do seguro obrigatório, da taxa de licenciamento e multas.
Nas palavras do diretor-geral, José Alves Bezerra, o Detran parecia ;uma casa de família;. De acordo com ele, servidores indicavam parentes para trabalhar nas empresas fornecedoras ou para compor a banca examinadora do órgão, com remuneração de cerca de R$ 800 por mês. ;Havia um total conluio das administrações com uma criação de um grande centro de emprego para parentes de funcionários. Quando você indica um marido ou filho para trabalhar numa empresa que presta serviço, está, de alguma forma, se autobeneficiando e abrindo brecha para haver cobranças no futuro. E isso aconteceu demais aqui dentro do Detran;, afirmou Bezerra.
[SAIBAMAIS]Essas são apenas algumas das irregularidades descobertas pela nova direção. Em 10 meses à frente da autarquia, Bezerra cancelou sete contratos assinados por gestões anteriores. Em alguns casos, conseguiu o mesmo serviço por valores até 30% menores que os praticados há cinco anos. Para se ter uma ideia, o cancelamento do acordo para a fabricação de placas de trânsito resultou numa economia de R$ 1,3 milhão em seis meses. Atualmente, o material é produzido ou reformado por presos. O custo, que era de R$ 490 por peça, caiu para cerca de R$ 80.
Acabar com os contratos de informática foi um dos maiores desafios. Ao longo de cerca de 15 anos, uma única empresa prestava o serviço e todo o sistema estava sob o controle dela. ;A dificuldade era manter os serviços para o cidadão. Não tínhamos controle nenhum do sistema e encontramos muita dificuldade para licitar e quebrar essa dependência;, citou. A empresa a que se refere Bezerra é a Search Informática, citada no escândalo da Operação Caixa de Pandora.
Bezerra relata outras falcatruas, como o gasto excessivo de combustíveis. ;Descobrimos que veículos da área administrativa com motor 1.0 faziam em média 4km por litro de gasolina. Ao diminuirmos o valor de abastecimento, evidentemente esses carros passaram a fazer a quilometragem normal, média de 10 a 12km por litro de gasolina;, disse (leia mais na entrevista ao lado).
Entrevista: José Alves Bezerra
Pelo menos sete contratos foram cancelados. Em geral, que tipo de problema eles apresentavam?
Alguns não tinham a previsão financeira orçamentária ou estavam direcionados. Faltavam os projetos básicos e tinha casos em que eram restritivos à participação de outras empresas no certame licitatório, entre outras coisas.
O senhor enfrentou resistências?
Sim. É evidente que desagradamos muitas pessoas, tanto internamente quando externamente. Recebemos retaliações inclusive com ameaças (de morte) e propostas de suborno para continuar com o esquema existente.
Como eram os esquemas? Que tipo de retaliação e de proposta de suborno o senhor recebeu?
Tem empresa que oferece o serviço e já traz o edital de licitação pronto. Isso devia ser uma prática aqui e eu estranho muito. Outra forma é oferta de dinheiro para manutenção de contratos emergenciais. Uma vez uma pessoa me ofereceu R$ 50 mil para eu manter uma estrutura de credenciamento. Eu disse a ela: ;Olha, eu não entendi que você está me oferecendo dinheiro. Porque, se eu bem entendi, o meu chefe de gabinete é um policial civil. E se for isso, eu vou chamá-lo e você vai sair daqui algemado e preso;. A pessoa pediu desculpa, disse que era assim que funcionava e sumiu. Nunca mais vi. Acho que o recado foi dado e de lá para cá não recebi mais proposta de dinheiro de ninguém.
De tudo o que o senhor encontrou, o que considerou mais grave?
O que me deixou mais desapontado foi o fato de que, quando assumimos o Detran, as viaturas estavam há mais de ano sem licenciamento. Não tinham seguro obrigatório nem multas pagas. Isso fez com que eu retirasse os veículos da rua até a regularização e a responsabilização dos servidores, deixando a cidade um pouco desprevenida em relação à fiscalização.
Fiscais do Detran em carros irregulares cobrando retidão dos condutores é vergonhoso, não?
Para não dizer uma coisa pior, eu diria que é um desleixo grande da administração, que deveria dar o exemplo. Não pode funcionar a tese de que em casa de ferreiro o espeto é de pau. É um desrespeito, uma falta de comprometimento no trato com a coisa pública. Hoje está tudo regularizado.
A situação encontrada era mais grave do que o senhor esperava?
Como dirigente sindical, muitas das denúncias apuradas hoje no Tribunal de Contas foram apresentadas por nós. O que eu não imaginava é que o estado de coisas estivesse de uma maneira tão destrutiva ao ponto de passar quase 10 meses tentando corrigir erros. A profundidade do buraco me surpreendeu. Até hoje não entendo por que é tão difícil sair da dependência de fornecedores e como os servidores do quadro deixaram a situação chegar aonde chegou, apesar de a direção ter estado sempre nas mãos de pessoas de fora.
Em meio a tanta corrupção, há alguma conquista?
Sim. Encerrar os contratos emergenciais e contratar as empresas por meio de licitação é um grande legado. As pessoas que têm contrato com o Detran sabem que não precisam se submeter a nenhum tipo de corrupção para ter seus serviços pagos. Agora, precisamos resgatar a imagem do órgão perante o público externo.
Problemas identificados
Entenda as irregularidades encontradas em alguns dos contratos das gestões passadas do Detran e o que está sendo feito para corrigi-los.
Inspeção veicular: R$ 215,8 milhões/ano
Irregularidades: Não tinha projeto executivo e possuía evidente restrição da competitividade com direcionamento. O processo continha 52 páginas sem numeração e 64 folhas avulsas.
Situação: Está arquivado e não será reaproveitado. Caso fosse fechado, o custo da inspeção veicular seria de R$ 166 por veículo de passeio (valor de 2008, sem atualização).
Apoio à execução de vistoria veicular: R$ 100,5 milhões/ ano
Irregularidades: Faltava projeto executivo, havia o termo de referência com evidente direcionamento para uma única empresa, folhas fora de ordem e ausência de 107 páginas no processo. O caso será encaminhado à Corregedoria para apuração de responsabilidades. Se fosse fechado o contrato, o contribuinte teria que arcar com nova taxa no valor estimado em cerca de R$ 70.
Situação: O processo foi cancelado e será encaminhado à Corregedoria-Geral do DF
Compra de uniformes: R$ 3,1 milhões
Irregularidades: Os uniformes seriam destinados a 290 agentes. Entre os problemas encontrados estão itens diferentes dos especificados, ausência de argumento para justificar a compra e insuficiência financeira para a aquisição.
Situação: Projeto arquivado. Nova proposta em fase de elaboração de edital prevê valor estimado de cerca de R$ 800 mil para a compra de uniforme para os atuais 290 agentes e os eventuais 100 que serão contratados no próximo ano.