A 10 quilômetros da rodoviária de Brasília, um terreno equivalente a 30 superquadras do Plano Piloto, vizinho a Vicente Pires e com acesso pela EPTG ou pela Estrutural, é explorado por empresários e famílias que aproveitam uma pendência na Justiça para usufruir de área nobre e bem localizada, onde até a água e a luz ficam penduradas na conta do governo. No espaço de 210 hectares ; ou 2,1 milhões de metros quadrados ;, funcionava o antigo Jockey Club de Brasília. A sociedade acabou há mais de uma década, a propriedade do lote ; uma doação oficial ; voltou para o governo em 2004, mas até hoje a Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap) não conseguiu reaver a posse do lugar. Enquanto isso, pagando preço de banana, alguns poucos privilegiados conseguem manter negócios em uma terra que vale ouro. Se for transformado em um bairro residencial, por exemplo, o terreno pode movimentar estimados R$ 14,7 bilhões em negócios.
Visto do alto, o descampado onde era o Jockey parece uma área perdida no tempo em uma cidade que precisou expandir-se exponencialmente ; na última década, a população do DF aumentou em 600 mil pessoas. A gleba que alterna terra batida com mato alto, além de poucas construções decadentes, contrasta com o amontoado de casas de Vicente Pires e da Estrutural, vizinhas ao lote onde era o antigo clube. Aparentemente ocioso, o espaço, no entanto, virou sede de pelo menos quatro negócios que, segundo sustenta a Terracap na Justiça, funcionariam clandestinamente.
Na propriedade em litígio atua uma importadora de pneus, uma cooperativa que faz a matéria-prima para mangueiras, além de uma firma que aluga contêineres. Não é só. Tratadores de cavalos remanescentes da época em que o clube foi criado para sediar corridas ainda nas décadas de 1960 e 1970 moram até hoje no local. Esses cuidadores se instalaram no lugar, construíram suas residências, se casaram e tiveram filhos. Muitos deles permanecem na área. Trinta e seis famílias vivem do aluguel de baias para abrigar animais de empresários, funcionários públicos e até de policiais militares, que também se aproveitam das pendengas judiciais para pagar uma pechincha pelos serviços.
A Atlântico Sul Pneus é uma das empresas com endereço no Jockey. Em funcionamento desde 2007, a firma aluga o prédio que era usado pela administração do clube, logo atrás da arquibancada de onde os apreciadores de corrida assistiam às competições. O lugar, um edifício azul desbotado de pé-direito alto, reúne os escritórios da importadora e também o galpão de mil metros quadrados, onde são estocados os pneus.
O depósito foi um achado. Os donos da firma pagam apenas 60% do valor de mercado, oportunidade que encontraram anunciada em jornal. ;Quando a gente decidiu montar o negócio, o aluguel no Jockey era imbatível. Não sabia que tinha essa briga na Justiça. Aí, quando veio a Terracap querendo o lugar, a gente começou a tentar um lote no Pró-DF. Conseguimos e daqui a um tempo vamos nos mudar para lá;, explicou Anna Câmara, uma das sócias da importadora.
Ao lado da Atlântico Sul Pneus funciona a Contenge Engenharia Locações, que usa parte do terreno do Jockey para recauchutar contêineres que a empresa aluga. No dia em que a reportagem esteve no endereço, dois funcionários da empresa lavavam as estruturas metálicas, que estavam dispostas a céu aberto. Ao lado, um grupo de uma cooperativa da Estrutural se dividia na reciclagem de lixo usado para fazer mangueira. Ali, o material que chega em carretas é separado e processado em caldeiras fumegantes para a reprodução da borracha.
Briga
Os empreendedores que exploram o local se negaram a dizer quanto pagam para funcionar no terreno do Jockey. Mas tanto os representantes da Atlântico Sul quanto integrantes da cooperativa confirmaram que os valores são repassados a Fernando Mattos, veterinário que briga na Justiça pela posse da terra. Um dos sócios do antigo clube, ele é quem administra os negócios arrendados em área pública, como consta no registro em cartório. Representantes da Contenge não quiseram falar sobre o assunto.
Em 2002, uma decisão da 6; Vara de Fazenda Pública do DF revogou a doação do terreno ao Jockey por descumprimento de contrato. Na época, o juiz Esdras Neves de Almeida considerou que, pela ;acurada análise do feito, tem-se como inequívoco o descumprimento pelo réu dos encargos a que livremente se submeteu quando da doação do bem;. Esdras referia-se à acusação da Terracap, que naquela época denunciou o Jockey por fracionar a área em oito unidades imobiliárias e arrendá-las, o que configura desvio de finalidade, segundo as obrigações contratuais.
O Jockey recorreu da decisão e em 2004 o TJ negou o recurso de apelação do clube, confirmando o ganho da causa à Terracap. Em segunda instância, o tribunal negou embargo declaratório proposto pelo Jockey e manteve, por unanimidade, a decisão que prevê a devolução do terreno à estatal. Em maio de 2009, quando o governo se preparava para fazer uma operação de desocupação da área, o veterinário Fernando Mattos conseguiu uma liminar da 5; Turma Cível do TJ permitindo que ele permanecesse no lugar até que houvesse uma decisão de mérito sobre a posse do terreno.
Análise da notícia - Mais um exemplo
O uso irregular de terras públicas atravessa a história do DF, onde pelo menos um terço dos domicílios está construído em áreas ocupadas ilegalmente. O caso do Jockey Club é mais um exemplo desse absurdo que virou rotina. A área é pública, mas empresas privadas pagam aluguéis mais baratos e pessoas exploram diversas atividades sem nem sequer bancar a água e a luz consumidas. Ou seja, há gente ganhando dinheiro à custa do erário. Leia-se: à custa da sociedade. Essa realidade precisa mudar. Não só no Jockey, que é apenas um dos inúmeros exemplos desse tipo de irregularidade. É passada a hora de o Estado e a Justiça resolverem essa questão.