Cidades

Uma vida dedicada à morte: coveiro exerce profissão há 40 anos

postado em 13/11/2011 08:10
Orlando já se acostumou com a  rotina:
O silêncio é a companhia do coveiro e jardineiro Orlando Luiz da Silva, 67 anos, diariamente. Desde 1974, ele toma conta de túmulos no cemitério Campo da Esperança, na Asa Sul. É fácil reconhecê-lo. Basta procurar pelo chapéu preto de boiadeiro, a única proteção que ele adota contra o sol. O senhor de cabelos brancos, bigode vasto e olhos claros é um dos funcionários mais antigos em atividade do único cemitério do Plano Piloto.

Há quase quatro décadas, ele dedica cuidados a quem já se foi. A memória dos mortos é considerada viva e respeitada por Orlando. Todos os dias, ele chega ao trabalho às 6h30, após deixar sua casa, em Taguatinga. O dia só termina às 18h30, quando as flores de todos os sepulcros pelos quais ele é responsável ; são mais de 100 ; foram regadas e as lápides, limpas. Atualmente, Orlando não cava os buracos das covas. Priorizou o serviço de jardinagem, devido à idade.

Durante anos, usando somente uma pá e a força dos braços, o coveiro abriu espaço para os sepultados. Nunca teve outra profissão. Aos 8 anos, em Minas Gerais, Orlando ajudava o pai, que também era coveiro, no trabalho. Hoje, há gente ilustre entre as pessoas a quem Orlando ajudou a dar adeus, como o ex-presidente Juscelino Kubitschek. O enterro de JK ocorreu em 23 de agosto de 1976, 14 dias depois de sua morte, em um acidente de carro.

Orlando lembra-se com detalhes daquele dia, quando colaborou com o enterro do ex-presidente, em um túmulo projetado por Oscar Niemeyer e construído com mármore branco, de sobras da Catedral Metropolitana de Brasília. Antes do enterro, houve um cortejo fúnebre pelas ruas da cidade. Bombeiros tiveram problemas para colocar o caixão no carro que seguiria rumo ao Campo da Esperança.

As pessoas presentes queriam carregar a urna. ;O povo leva!” era um grito que ressoava. ;O corpo de JK só chegou ao cemitério à meia-noite. A gente estava pronto para receber o corpo desde as 4h da tarde e só foi para casa às 4h da madrugada;, lembrou o coveiro. ;Nunca vi tanta gente na minha vida. Pense em um homem admirado, querido. Mas faz sentido. Ele tratava todo mundo igual;, disse Orlando.

O corpo de JK ficou no Campo da Esperança até 1981. Depois disso, foi levado para o Memorial JK. A sepultura, entretanto, continua no mesmo lugar. Lá estão os corpos da ex-primeira dama Sarah Kubitschek e da filha do casal, Márcia Kubitschek. Outra data importante para Orlando foi o enterro do jornalista Mário Eugênio, assassinado em 11 de novembro de 1984, com sete tiros na cabeça, depois de denunciar o esquema de policiais corruptos, atuante em Brasília e Goiás. ;Parecia o enterro de JK, em quantidade de gente. Até hoje o povo visita Mário Eugênio.;

Escuro
Durante muitos anos, Orlando trabalhou durante o período noturno no cemitério. Nesse turno, os empregados cumprem seus deveres, normalmente. Aparam a grama, plantam, regam flores, fazem limpeza e muito mais. ;Era difícil encontrar algum funcionário disposto a passar a noite lá. A maioria tinha medo. Eu nunca me preocupei com essas bobagens. O cemitério é o lugar mais tranquilo do mundo à noite, não tem ninguém para perturbar;, avaliou. Diferentemente de outros colegas, que temem espíritos e almas penadas, Orlando tem pavor da violência dos vivos. ;Enquanto estou com os mortos, está tudo bem. O problema é da porta do trabalho para fora: tem ladrão, bala perdida.;

Apesar do clima de tranquilidade, Orlando já precisou enfrentar situações inusitadas no ambiente de trabalho. Como um enterro no qual os familiares do morto fizeram churrasco e levaram instrumentos musicais para a área do sepultamento. ;Era normal na cultura deles, alguma religião, não sei qual. Foi uma festona. Mas, depois, a direção proibiu esse tipo de manifestação.;

Alguns visitantes inoportunos têm o hábito de invadir o cemitério à noite, mesmo com a limitação do horário de funcionamento. Eles pulam a cerca ou entram por um dos portões laterais, sem vigilância, na escuridão. Tudo isso, ele diz, para consumir bebida alcoólica, usar outras drogas e até namorar nas pracinhas do cemitério. ;Tem doido para tudo;, argumentou.

Magia
O coveiro relembra com um sorriso aberto uma ocasião em que precisou espantar visitantes inusitados. Um trio de mulheres ia ao cemitério toda semana para fazer rituais de magia negra. Elas violavam o portão e entravam pela via principal. Deixavam cabeças de porco e de bode, garrafas de aguardente, pipoca e sangue espalhados perto da região conhecida como cruzeiro, onde há cruzes grandes, no centro do cemitério. ;Passavam pano preto na cara uma da outra. Chamavam nome de entidade. Um dia, chegamos para trabalhar e tinha um bode vivo andando no cemitério, cheio de fitas vermelhas e pretas penduradas. Alguém levou para casa;, lembrou. No dia seguinte, Orlando tinha de limpar a sujeira.

Cansado dessa situação, ele decidiu agir. Numa noite em que as mulheres apareceram para se divertir, o coveiro se escondeu atrás de um arbusto. Quando elas se preparavam para descer de um grande carro preto, ele emitiu sons bizarros com a boca, para assustá-las. ;Funcionou que foi uma beleza. Elas saíram correndo de carro, cantando pneu de tanto medo. Devem ter achado que eu era o sujeito para quem elas faziam aquela macumba;, conta Orlando, entre gargalhadas.

Nessa profissão, porém, nem todas as situações permitem risos ao serem lembradas. Orlando também precisa socorrer com frequência pessoas que não suportam a dor da perda. ;Direto, tenho que dar os braços para alguém que desmaia. É muito triste. Dizem que a pessoa se acostuma com o sofrimento. Eu não acredito nisso. A gente sente a dor junto, todos os dias;, observou. Orlando tem o pai e um filho enterrados no Campo da Esperança. ;Já senti como é estar do outro lado da situação.;

No dia a dia, o coveiro aprendeu a aceitar a morte. Diz não ter medo dela, nem do que pode esperá-lo do outro lado. Quer ser enterrado no Campo da Esperança, quando chegar a sua hora. ;As pessoas perguntam se não vou me aposentar. Daqui, eu não saio nem morto;, sentenciou.

"Dizem que a pessoa se acostuma com o sofrimento.
Eu não acredito nisso. A gente sente a dor junto, todos os dias;

"Enquanto estou com os mortos, está tudo bem. O problema é da porta do trabalho para fora: que tem ladrão, bala perdida;

100
Número estimado de sepulturas das quais Orlando cuida

900
Quantidade média de sepultamentos mensais no Campo da Esperança

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