postado em 03/12/2011 08:30
A terra esperava pela cidade e as duas esperavam pelo lago. A topografia que margeava o apressado, tortuoso e borbulhante Rio Paranoá se oferecia, teluricamente, a um futuro espelho d;água que cobriria toda a extensa depressão ao redor das corredeiras. O rio piscoso e pedregoso dividia os municípios de Planaltina e Luziânia e era bordeado em vários pontos por uma mata alta e densa. Para interromper a passagem da água foi necessário um paredão que engoliu 684 mil metros cúbicos de pedra e exauriu entre 1,2 mil e 3 mil operários (não há consenso nos registros históricos).
A história do Lago Paranoá é, dentre as narrativas sobre a construção de Brasília, uma das mais difusas. Não se sabe exatamente a razão, mas a máquina governamental de Juscelino Kubitschek, que anotou diligentemente as obras da nova capital, negligenciou o desmatamento da área destinada ao lago, a construção da barragem, o fechamento das comportas, o surgimento da superfície de água na paisagem.
Entre os adversários da nova capital, havia os que jogavam praga. Um deles, o engenheiro, escritor e pensador Gustavo Corção (1896/1978) dizia que o solo da região era poroso, cheio de furinhos, e, sendo assim, nunca encheria. Depois da temporada de chuvas de 1961, a segunda com as comportas fechadas, as águas finalmente atingiram a planejada cota 1000. Juscelino mandou a Corção um telegrama tão curto quanto irônico:
; Encheu, viu?
Fácil não foi. Como Juscelino anotou em Por que construí Brasília, os problemas na construção da barragem do Paranoá foram ;os de solução mais difícil; (página 276). A empresa contratada para a obra da barragem e da usina do Rio Paranoá, a norte-americana Raymond Concrete Pile, teria 17 meses para concluir a obra, a partir de 12 de junho de 1957, quando o contrato foi firmado. Menos de dois anos depois, a obra não estava pronta, e o contrato com a empresa foi alterado ; ;quase uma rescisão;, como escreve o pesquisador Luís Carlos Lopes ; e a tarefa foi entregue a um pool de seis empresas brasileiras.
A decisão de mudar as regras do contrato com a Raymond surgiu depois de uma visita de Juscelino ao local onde seria construída a barragem. Ele não revela a data dessa vistoria, mas conta a sua surpresa: ;;verifiquei que nem as estacas preliminares de concreto, que se fincavam antes da construção da barragem, haviam sido providenciadas. Na realidade, a obra nem havia tido início, pois todo o trabalho até então feito cingira-se exclusivamente à montagem das indispensáveis plataformas de serviço;.
Juscelino mandou chamar Israel Pinheiro, presidente da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), e determinou que o contrato com a norte-americana fosse rescindido. Israel ponderou que uma rescisão traria problemas ao governo, que a empresa poderia entrar em juízo e pedir indenização por quebra de contrato. JK retrucou: Brasília não poderia ser inaugurada com um lago vazio, ele era a ;moldura líquida da cidade;.
Àquela altura, Juscelino parecia já ter dominado toda a pré-história da nova capital. O lago Paranoá havia sido prenunciado meio século antes de o presidente se irritar com a demora na execução da obra. É bastante conhecido o trecho do relatório do engenheiro e paisagista francês Auguste Glaziou, membro da Missão Cruls, no qual ele conta que, vagando por um ;vastíssimo vale;, encontrou ;imensa planície; que outrora teria sido um lago e que, em se construindo um dique, ;forçosamente a água tomará ao seu lugar primitivo e formará um lago navegável em todos os sentidos;; (ver na página seguinte).
Antes mesmo de Juscelino tomar para si o sonho mudancista de dois séculos, os arquitetos Raul Penna Firme e Roberto Lacombe e o engenheiro José de Oliveira Reis haviam determinado que o plano-piloto (com hífen) da nova capital ;deveria ter como uma de suas condicionantes o Lago Paranoá, que, após o seu enchimento, atingiria a cota de mil metros acima do nível do mar;. O lago ornamental seria ;destinado aos esportes náuticos, limitado pelas margens dos rios Bananal e Gama, transformadas em praias artificiais, cobertas de buritizal, numa extensão aproximadamente de dez quilômetros, obtendo-se este motivo paisagístico de encantadora apreciação, que forma com os parques naturais, a serem protegidos, uma agradável atração da cidade;.
Os dois arquitetos e o engenheiro compunham a subcomissão de planejamento urbanístico da comissão chefiada pelo marechal José Pessoa, que, ainda no governo Café Filho, escolheu a área da nova capital, deu início ao processo de desapropriações, fez um projeto urbanístico e construiu um aeroporto provisório. Juscelino poderia ter aproveitado esse estudo, mas preferiu fazer uma competição pública para a escolha do projeto de Plano Piloto. Mas o esboço de Penna Firme, Lacombe e Reis serviu de base para o edital do concurso e nele estava prevista a criação de um lago artificial.
A ideia de um lago bordeando a nova capital sobreviveu, quase silenciosamente, a todas as etapas que levaram à construção da capital, desde o fim do século 19. É tanto que, quando foi preciso escolher o sítio da cidade, dentre cinco, o eleito foi o único que abrangia as depressões do encontro do Rio Paranoá com seus afluentes (Gama, Riacho Fundo, Torto e Bananal, os principais). Mas, vale observar, o lago não era uma condicionante explícita na escolha do lugar. Havia 10 critérios a serem observados, desde a topografia até a facilidade de desapropriação. Nenhum, porém, fazia referência ao futuro lago. Mesmo assim, o sítio escolhido, o Castanho, era o único que continha as terras a que Glaziou tão belamente se referiu. É tanto que, nos dez parágrafos do parecer técnico do Relatório Belcher sobre o Sítio Castanho, a possibilidade do lago surge, discretamente, em três linhas quase ao fim do texto: ;Os recursos recriacionais da vizinhança são tão variados como excelentes, variando desde as encostas densamente florestadas do Rio Paranoá até os pontos vizinhos onde é possível construir lagos artificiais;.
O contrato com a Raymond não foi rescindido, mas as mudanças restringiram suas atividades até 31 de dezembro de 1959, quando ela e a empresa brasileira que a representava, Construtora Planalto, levantaram acampamento. As obras foram entregues às brasileiras Camargo Corrêa, Portuária, CCBE, Rodobrás, Geotec, Rabelo e Novacap. À Camargo Corrêa coube a tarefa mais importante, a construção da barragem. As comportas foram fabricadas pelo Arsenal da Marinha brasileira.
Superado o primeiro obstáculo, o da construtora norte-americana, começou-se efetivamente a árdua tarefa de quebrar pedra para subir o paredão da barragem. Antes, porém, outra extensiva tarefa havia sido iniciada, o desmatamento e a limpeza do leito do futuro lago. Foram 4 mil hectares (4km;) orçados em Cr$ 6 milhões, de acordo com ofício 0491, da Novacap, emitido em 10 de março de 1958. Havia, no lugar mais tarde coberto pelas águas, uma densa mata ciliar, com árvores de grande porte. A empreitada foi entregue ao suíço Paulo Wettstein.
Mais problemas viriam. Em discurso na tribuna da Câmara Federal, ainda no Rio de Janeiro, em 3 de novembro de 1959, o deputado Elias Adaime (PSD/SC)), denunciou supostas irregularidades na construção de Brasília. Algumas se referiam ao desmatamento do lago e à construção da barragem. Entre as denúncias, estava a de que a madeira de lei retirada da área desmatada era entregue a ;amigos íntimos; de chefes de departamento da Novacap. Assim esbravejou Adaime: ;Vejamos a questão da madeira: o lago, hoje desmatado, tinha madeira de lei. Essa madeira deveria ser entregue à Novacap que compra lenha de particulares, pagamento 30 milhões (de cruzeiros) e poucos. A empresa começou o desmate e não se sabe para onde ia a madeira de lei. Os chefes de departamento, então, autorizavam amigos íntimos a, para uso doméstico, retirar lenha do lago, até 3 mil metros cúbicos. Isto daria para 20 gerações;.
Oito dias depois, em documento de 27 páginas, Israel respondeu às acusações do deputado, ponto por ponto. No que diz respeito à madeira retirada do leito do futuro lago, informou que no contrato para o desmatamento, a madeira de lei deveria ser entregue pela empreiteira à serraria e à lenha, à cerâmica, as duas da Novacap. ;Isso foi feito e rigorosamente fiscalizado.; Porém, esclareceu Israel, quando terminou o desmatamento, sobrou, em zonas alagadiças, ;restos de madeira e galhos que, pela sua natureza e pelo gasto que adviria do transporte, não compensavam sua utilização na serraria ou na cerâmica;. Foi decidido então que o restolho da madeira poderia ser retirado por particulares para uso doméstico.
Se, para os operários das obras do Plano Piloto, a rotina era por demais exaustiva, para os candangos que trabalhavam na barragem, ela exigia esforço físico supremo, principalmente para os que tinham de quebrar as pedras usadas na compactação da muralha que interceptou as águas do rio Paranoá e de seus afluentes. O paredão precisava de rocha mais firme, menos firme, argila e também concreto, de modo que, como escreveu Beto Barata em Brasília submersa, pudesse e "conter e filtrar água".
Pelo menos meia dúzia de pedreiras foram exploradas nos arredores do lago para a retirada de cascalho, brita e areia necessárias à construção da barragem. Algumas eram particulares, outras pertenciam às construtoras. Trabalhavam nelas operários e até mulheres e crianças "que quebravam as pedras em tamanhos reduzidos que o maquinário de grande porte não processava", relatam os pesquisadores Antônio Menezes Júnior, Marta L. Sinoti e Regiina Coelly Saraiva em texto incluso no livro Olhares sobre o Paranoá. Ao longe, ouvia-se continuamente o barulho das explosões e o estremecimento do solo por conta do deslocamento de grandes massas de pedra.
Quando o Lago Paranoá atingiu a cota 1000, suas águas se estendiam por 37,5km;, de braços abertos para o Plano Piloto. Elas haviam engolido um extenso aglomerado de barracos de madeira e sacos de cimento, a Vila Amaury, que surgiu para abrigar candangos sem teto. Em março de 1957, quando Lucio Costa ganhou o concurso, o presidente do júri, William Holford, mesmo encantado, pediu a ele que descesse a cidade para mais perto do lago. O que foi feito.
NO CALENDÁRIO
18 de outubro de 1956 ; Israel Pinheiro informa à impresa que as obras de represamento do Lago Paranoá já começaram.
Julho de 1957 ; Concluído o anteprojeto da usina hidrelétrica.
Dezembro de 1958 ; Início das obras da ensecadeira do desvio, com previsão de que, no começo de 1959, se completaria o canal do desvio. Em seguida, ficariam prontas a ensecadeira do desvio, a escavação do vertedouro e a impermeabilização.
Janeiro de 1959 ; Conclusão da ensecaderia do desvio e conclusão do vertedouro.
28 de fevereiro de 1959 ; O canal para o desvio, a ensecadeira do desvio, a escavação do vertedouro e a segunda fase da impermeabilização foram concluídos.
25 de abril de 1959 ; A Novacap anuncia que, por determinação do ministro da Marinha, almirante Mattoso Maia, o Arsenal da Marinha no Rio de Janeiro iria construir as comportas da barragem do Rio Paranoá.
2 de maio de 1959 ; Em avião especial, chega a Brasília 1,5 mil exemplares de peixes selecionados pela Divisão de Caça e Pesca do Ministério da Agricultura e que servirão de reprodutores no Paranoá.
12 de setembro de 1959 ; Fecha-se a barragem do Paranoá. Juscelino e Sarah fazem descer a comporta de ferro da barragem, manobrando um trator, sob o testemunho de uma multidão. O lago começa, então, a se formar.
19 de novembro de 1959 ; A Usina do Paranoá, contratada com a Siemens, aproveitará o desnível da Cachoeira do Paranoá e a barragem do Lago. Os trabalhos da barragem já estão concluídos na parte essencial, ficando a Siemens com os serviços de instalação da usina.