Do centro geográfico do Plano Piloto brota uma obra que é ao mesmo tempo um edifício e um sistema viário, peça de arquitetura e de urbanismo. A mais complexa obra de Brasília não pertence a Oscar Niemeyer. É uma das duas criações do arquiteto Lucio Costa para a cidade (a outra é a Torre de Tevê). A Plataforma Rodoviária é mutante: transfigura-se em Eixão, mistura-se ao Eixo Monumental e se transforma em estação de ônibus, de passageiros e em shopping e setor de serviços.
Por pouco, a Rodoviária não seria construída no governo de Juscelino e, talvez, em nenhum outro governo. Lucio Costa chegou a sugerir ao presidente que deixasse a obra no cruzamento dos eixos para o governo seguinte. "Não senhor. Seu projeto depende dessa plataforma, quero deixar tudo pronto e iluminado". E assim foi feito. (Veja texto de Maria Elisa Costa).
O desprezo da qual a múltipla obra tem sido vítima ao longo dos últimos governos esmaeceu, mas não destruiu a grandeza do projeto de Lucio Costa. "Simbolicamente ; escreveram Geraldo Nogueira Batista e Sylvia Ficher ; a Estação Rodoviária representa, ao mesmo tempo, a dimensão mais cotidiana de Brasília, e o anseio de modernidade". Distante da sede dos três poderes, ela abriga a população mais humilde, observam os arquitetos no Guiarquitetura Brasília.
Não foi essa a intenção primeira de Lucio Costa, como ele mesmo reconheceu em visita que fez a Brasília, em meados da década de 1980. Da desejada "mistura em termos adequados de Piccadilly Circus, Times Square e Champs Elysées", a Rodoviária passou a ser ocupada pelo trânsito intenso de usuários de ônibus urbanos.
Centro borbulhante
O presidente Juscelino aderiu de pronto à projeção de Lucio Costa e também imaginou uma Rodoviária sofisticada, como disse no discurso de inauguração da plataforma, em 12 de setembro de 1960, dia de seu aniversário, três meses antes de deixar o governo. "Em torno dessa magnífica plataforma, não tardará a instalar-se um centro borbulhante de vida, com as suas instituições de cultura, as suas salas de espetáculos, as suas lojas, as suas galerias, as suas vielas de porte veneziano, seus trevos, terraços e cafés, onde se encontrará o ambiente propício à vida em comum, o lugar de encontro, o convívio tão necessário ao citadino."
A rigor, nem Lucio Costa nem Juscelino erraram tanto assim. Ao redor da Rodoviária, surgiu inquieto movimento urbano desde o Conic, o setor mais democraticamente diversificado de Brasília, ao Conjunto Nacional e às plataformas que ligam a Asa Norte à Asa Sul.
Quando visitou a cidade em meados da década de 1980, trazido pelos ventos democratizantes que sopravam no país, o arquiteto se encantou com a Rodoviária. Reconheceu que os brasilienses tinham melhorado o projeto original e de nenhum modo se condoeu com a alteração espontânea.
O mais importante estava feito. Lucio Costa conseguiu encaixar levemente na paisagem um projeto intrincado, que exigiu monumental movimento de terra. "A acomodação topográfica faz pressupor que o equipamento foi implantado como se o terreno, naturalmente, já preexistisse", explica o arquiteto Eduardo Rossetti em texto publicado no portal vitruvius. Pelas dimensões da obra, era de se esperar uma intervenção bruta na paisagem, mas o tratamento plástico de suas superfícieis, como esclarece Rossetti, suavizaram sua presença na paisagem da Esplanada dos Ministérios.
A intenção do criador de Brasília parece ter sido a de dissolver a Rodoviári na paisagem. A ele, pouco interessava a exibição da forma, a imposição estética do concreto armado, mas sua discreta e perfeita inserção na cidade. "A solução ; aponta Rossetti ; abdica da questão da forma como parte exclusiva de sua formulação projetual. O que interessa é o lugar." Para fazer o projeto arquitetônico e urbanístico do marco zero do Plano Piloto, Lucio Costa fez uso de conhecimentos os mais variados: o de construção de rodovias, o de articulação de uma trama viária Complexa, o de fluxos de pedestre e o de conexões urbanas.
E ainda mais: teve o cuidado de projetar a Rodoviária como um mirante da Esplanada e das obras de Niemeyer, "deixando o pedestre com maior intimidade perante a monumentalidade da cidade." E não apenas para ele. O motorista que faz o primeiro retorno após a Rodoviária, como quem se despede da cidade, tem uma última visão panorâmica dos ministérios, da Praça dos Três Poderes e do Eixo Monumental leste. Mais ainda, a Rodoviária ocupa o lugar simbólico da conexão de todas as Brasília numa só, a do centro geográfico da cidade. Todas as cidades-satélites se cruzam na Rodoviária e dela partem passageiros rumo a todo o Distrito Federal. No primeiros anos, os ônibus interurbanos também saíam do cruzamento dos dois eixos.
350 caminhões
A obra mais portentosa de Brasília exigiu extremado movimento de terra. Pode-se conferir as alterações no relevo do terreno na foto que mostra a profundidade das escavações, um corte de cerca de dez metros. "Tinha uma máquina muito grande, chamada Lodel. Ela trabalhava fazendo volta. Ia escavando e a esteira ia enchendo os caminhões e a terra era levada para a Praça dos Três Poderes", conta o engenheiro Ronaldo de Alcântara Velloso que, ainda como topógrafo, trabalhou na preparação do terreno, entre junho e agosto de 1957. Aproximadamente 350 caminhões fizeram o transporte da terra do cruzamento dos eixos para a Praça dos Três Poderes. A movimentação de terra teve dois propósitos igualmente grandiosos: abrir espaço para a Rodoviária e subir o terreno do Eixo Monumental leste até a Praça dos Três Poderes para que a Esplanada ficasse inteiramente à vista desde o cruzamento dos eixos.
O carpinteiro Edwardes Cabral, 84 anos, trabalhou no Buraco do Tatu. "O servente ia cavando e a gente fazia a forma", conta Cabral, à época funcionário da Construtora Rabello, responsável pela obra da Rodoviária, do Palácio da Alvorada, do Supremo Tribunal Federal, entre tantas outras em Brasília. "Sabe por que a Rodoviária balança?", pergunta Cabral. E ele mesmo responde: "Porque não é viga ligada uma na outra, é peça pré-moldada." De fato, são estruturas em concreto armado moldadas no local.
Na placa comemorativa da inauguração da obra, está escrito que a Estação Rodoviária de Brasília é "o estuário em que palpitará a vida de Brasília, na sua expressão de progresso, grandeza e força pioneira, a serviço do Brasil."