Cidades

Relembre as crônicas sobre Conceição Moreira no Correio Braziliense

Conceição Moreira Salles era uma personalidade querida na cidade e foi homenageada em mais de uma ocasião nas páginas do Correio Braziliense. Leia, a seguir, textos de Marcelo Abreu e Conceição de Freitas sobre a ex-diretora da Biblioteca Demonstrativa.

postado em 07/01/2012 12:00 / atualizado em 19/10/2020 17:16



O ÍMÃ DA 506 SUL

Crônicas da Cidade // CONCEIÇÃO FREITAS (14/11/08)

Quando alguém pergunta pra Maria da Conceição Moreira Salles se ela é parente do Pedro Moreira Salles, o banqueiro, ela diz que ele é dono de banco de dinheiro e ela, de um banco de praça. Não é só uma brincadeira ingênua. Faz 25 anos que Conceição gerencia uma praça de livros e leitores, de música e músicos, de poetas e poesia. Ela é a coordenadora da Biblioteca Demonstrativa de Brasília, um braço da Biblioteca Nacional que se estendeu em Brasília há 38 anos, mas durante muito tempo vinculada a outros órgaõs.

Vinte e cinco anos é tempo demais para um funcionário público — há muitos deles que depois do primeiro ano de serviço já grudaram na bóia do menor esforço. Só por não se encostar na estabilidade, Conceição merecia aquela foto de funcionário do mês todos os trezentos meses de trabalho na repartição. Porque a Biblioteca Demonstrativa não é somente o emprego da xará, é a vida dela. Depois do horário regulamentar, Conceição vai a lançamentos de livros, espetáculos em geral, Clube do Choro, Clube do Samba, palestras, saraus, uma noite sim e outra também.

Apesar de mineira de Belo Horizonte, a xará não se esconde atrás das montanhas. Tem a personalidade do chapadão que a abriga: é aberta para o mundo. Como diz Dad, sua amiga, Conceição é uma pessoa inclusiva. De seu ímã geográfico da 506 Sul, ela atrai leitores, escritores, professores, poetas, músicos, promotores de cultura em geral. Tem o dom da multiplicação das horas do dia e dos minguados recursos destinados à biblioteca — uma categoria institucional a quem cabe, historicamente, a menor fatia do bolo.

Talvez pela falta de caixa, a Biblioteca Demonstrativa conserva um adorável jeito de biblioteca do interior, de bairro, de comunidade. Cartazes feitos à mão, funcionários antigos e prestativos, móveis bastante usados facilitam a aproximação de quem, por exemplo, não tem o hábito de freqüentar bibliotecas. (Pelos poucos recursos da biblioteca, vê-se, portanto, que Maria da Conceição Moreira Salles não é mesmo parente do banqueiro.)

A biblioteca é como a xará: de fácil aproximação. Conceição conhece Deus e o mundo nesta Brasília. Inquieta, elétrica, vive passando à frente das palavras, do tanto que ela quer contar, conversar, expor, defender, protestar… e fazer. Como o bairro onde mora, Águas Claras, não tem biblioteca, ela criou um clube do livro na comunidade. E além da Bibliomúsica, Poesioteca, Quinta Sonora, eventos que promove periodicamente na biblioteca, a xará ainda participa de um time de vôlei master.

Conceição joga também em outro time: o da inclusão social. A biblioteca oferece aulas particulares a alunos em dificuldades. Como o adolescente que anteontem pela manhã aprendia regência verbal com uma professora numa das salas de leitura. No ambiente de livros e leitura, professora e aluno falavam bem baixinho, sussurravam por assim dizer. O serviço é voluntário.

A Câmara Legislativa votou e aprovou (e, desta vez, acertou): Conceição é a nova cidadã honorária da cidade. Mas só quer receber o título no Dia do Bibliotecário, 12 de março. A xará é de dar orgulho.


NO CAMINHO DA LUZ
Depois de passar um mês internada na Unidade de Psiquiatria do HBDF, Conceição retorna ao lugar para ser voluntária
Marcelo Abreu - Da equipe do Correio (30/03/07)

O NOME DE MARIA DA CONCEIÇÃO PODERIA SER ESPERANÇA. APÓS UMA CRISE EMOCIONAL, ELA DÁ A VOLTA POR CIMA E REASSUME CARGO DE DIRETORA DE BIBLIOTECA

Na carta de despedida que fez ao deixar aquela unidade, a paciente escreveu: “A depressão nos leva a um mundo só nosso (só quem teve sabe o que é) e aqui aprendi a conviver com o novo, olhar o outro e suas necessidades. Ao deixar o hospital, retomei minha vida mais forte, mais segura e melhor como pessoa. Mudei meu quadro de valores… Além disso, fiz um propósito de ajudar as pessoas que têm depressão e a esta casa. Contem sempre comigo”.

Depois das lágrimas e do torpor, veio aalegria. E a imensa vontade de viver um dia após o outro, intensamente. A melhor catarse. Uma dádiva. E assim ela o fez. Desde 2001, a vida de Maria da Conceição Moreira Salles, 60 anos, diretora da Biblioteca Demonstrativa de Brasília, separada, sem filhos, entrou em outra sintonia. Foi preciso ir ao fundo do poço para descobrir a si mesma e encontrar, no meio da escuridão, o que restava de bom. O que a vida ainda podia lhe oferecer.

Essa história pode começar assim: o dia em que Maria da Conceição renasceu. Faz seis anos que ela deixou a Unidade de Psiquiatria do Hospital de Base do Distrito Federal(HBDF), onde ficou internada durante um mês. De repente, a mulher que comandava havia 19 anos uma biblioteca importante na cidade, praticava esportes e levava uma vida normal, entrou numa depressão profunda. Hipertensa, dois anos antes, foi impossibilitada de doar um rim para um irmão, renal crônico, mesmo com todos os exames atestando a compatibilidade.

Saiba Mais

Dava-se ali o início de um longo e sofrido processo de tristeza, sentimento de culpa e impotência. Começava a se instalar, mesmo que nem se desse conta, a depressão que mudaria sua vida. Foram meses de choro, abatimento, vontade de desistir da vida, insônia e dores pelo corpo. Um padre conhecido chegou a lhe dizer, certa vez: “A senhora só vai deixar de ficar angustiada quando parar de se sentir culpada”. O irmão conseguiu um novo rim, doado por uma parente.

Do alto da janela do apartamento, na Asa Norte, Maria da Conceição enxergava todos os dias um Kadett vinho, onde estava escrito: “Deus é fiel”. Nos momentos de angústia e desespero, debruçavase na janela para ver a mensagem. Um dia, resolveu perguntar de quem era aquele carro. O porteiro lhe respondeu: “Nunca existiu um Kadett vinho neste bloco”. Em decorrência de remédios receitados por médicos particulares, com quem se tratava da tristeza profunda, acabou desenvolvendo uma gastrite medicamentosa. Perdeu 12kg. Esquálida, não mais vivia. “Só quem tem depressão sabe o que é sentir dor na alma”, avalia.

A idéia de desistir de tudo era recorrente. Um dia, em fevereiro de 2001, a empregada a encontrou desmaiada. Maria da Conceição havia tomado uma caixa e meia de um ansiolítico (remédio contra ansiedade). Dali, foi direto para a emergência do HBDF. Depois, para a Unidade de Psiquiatria. Seu corpo e sua mente estavam muito doentes.

O começo da cura

O mundo da biblioteconomista que comandava uma equipe com mais de 50 funcionários ruiu. Lá, no lugar das roupas bonitas que usava no dia-a-dia, vestiu o uniforme dos pacientes do hospital — camisola branca de tecido barato com o nome do hospital grafado na frente. Sem forças para andar, devido à debilidade física e emocional, passou a usar cadeira de rodas. “Foi quando, pela primeira vez, senti medo de encarar a vida, medo do futuro. Não sabia se um dia voltaria a ter minha vida”, conta ela, com os olhos marejados.

Seguiram-se consultas com psiquiatras e remédios. Uma moça da limpeza, que cuidava da arrumação da enfermaria, onde a paciente dividia espaço com outras quatro mulheres, era sua companheira de conversa. Ouvia seus temores. Consolava-a em seu pranto. Um dia, Maria da Conceição perguntou à faxineira qual o era o sonho dela. A moça humilde e feliz respondeu: “Era ter uma sandália bem bonita”. A paciente percebeu ali, mesmo diante do torpor em que vivia, que a vida pode ter exatamente o sentido que se queria dar a ela.

Ao perceber que a cura da depressão profunda estava em suas mãos, a paciente envolveu-se com os intrnos da unidade — gente que sofria tanto quanto ela. Os mais novos a chamavam de “tia”. Ela começou a ler livros para eles e contar histórias. Eles a ouviam. Por outro lado, também aceitou ajuda dos voluntários que faziam trabalhos na unidade. Uma sobrinha querida a visitou. E lhe falou: “Olhe a sua volta, você precisa reagir”. Mais forte — física e emocionalmente — ela começou a andar. Deixou a cadeira de rodas. “Fiz do corredor da psiquiatria o meu caminho de Santiago de Compostela”, compara, desta vez em lágrimas. “Mas agora só choro de alegria, viu?”, faz questão de explicar.

Passo a passo venceu o pequeno e estreito corredor. Um dia chegou à sala do médico residente que a acompanhava e que acabou virando amigo. Quando a viu, ele a abraçou, emocionado. E lhe disse: “Eu sabia que você ia conseguir”. Passaram-se dias. Em março, Maria da Conceição deixou o hospital. Dois meses depois, de vestido vermelho, salto, cabelos cuidadosamente penteados, retornou ao HBDF. Queria agradecer a ajuda que ali recebeu. O porteiro da Unidade de Psiquiatria não a reconheceu: “Nunca um paciente voltou aqui para fazer uma visita”.

Espírito em dança

Maria da Conceição voltou. E reencontrou a auxiliar de enfermagem que a ajudava a tomar banho. “Ela me dizia, quando estava na cadeira de rodas, que ainda ia me ver dançando. Que eu ficaria boa”. No dia da visita, a ex-paciente, apenas com a música imaginária que vibrava na sua cabeça, pegou na mão da auxiliar e dançaram juntas pelo corredor. Era sinal de renascimento.

Naquele abril de 2001, a diretora da biblioteca voltou ao trabalho. E continuou o tratamento no ambulatório. Junto com a medicação, fez terapia por um ano. “Retomei minha vida de onde havia deixado”, conta, ainda com os olhos abarrotados de lágrimas. Maria da Conceição mudou de endereço. Comprou um apartamento em Águas Claras, voltou ao trabalho em tempo integral e às palestras que promove com mulheres, há 22 anos.

E olhou, como nunca, para si mesma. “Caminho no parque, jogo vôlei na equipe master, viajo com a seleção e não tomo mais remédios. Agradeço todo dia a Deus o fato de estar viva.” Nesse momento, os olhos dela se enchem de encantamento. A vida da mulher pósgraduada em biblioteca biomédica pela Escola Paulista de Medicina, com especialização em biblioteca pública na Universidade de Brasília precisou ir ao fundo do poço para emergir. “E no fundo do poço a escuridão é total”, constata e alerta: “Mas é possível sair dele. E isso só acontece com Deus junto de você, médico e remédio certos e a ajuda da família e dos amigos”.

Volta à psiquiatria

Depois de 24 anos à frente da Biblioteca Demonstrativa de Brasília, Maria da Conceição pediu demissão do cargo. Não conseguiu ser exonerada. O chefe lhe perguntou o que ela queria para ficar. Ela respondeu: “Tempo para mim”. Ele deu. Ela, que trabalhava os três turnos, passará a trabalhar apenas dois — à tarde e à noite. Pela manhã, a diretora já tem outro plano: vai fazer parte do Serviço Auxiliar de Voluntários (SAV) da Unidade de Psiquiatria do HBDF. “Acho que posso ajudar muito aquelas pessoas”, avalia. E comenta: “Eu, que tinha medo de doenças mentais, um dia fui parar ali, no meio de todas elas. É chegada a hora de retribuir o que recebi”.

Na sala da biblioteca que dirige, rodeada de papéis, tarefas, e-mails para responder, reuniões para marcar, decisões para tomar, a mulher de voz grave e sotaque mineiro revê a vida. “Acho que tive uma missão. Essa experiência toda me tornou uma pessoa melhor”, acredita. Com tudo que viveu, a ex-paciente da psiquiatria descobriu que o ser humano está sempre no limiar de suas angústias. Com suas dores da alma, Maria da Conceição marcou a própria vida. Às vezes, é preciso morrer para enxergar o tanto de vida que ainda resta.

 

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação